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sábado, 10 de julho de 2010

Os novos muros de "Berlim" - Desabafo de um Guarda

Nos anos 80 fui colocado numa "velha" companhia da raia terrestre alentejana da, então, muito prestigiada Guarda Fiscal - comparando, claro está, com a, então, mais que obsoleta GNR, que ainda andava de mauser, camisa verde exército, e polainas - O refeitório dessa companhia era uma sala ampla de tectos altos e trabalhados, com grandes janelas donde se podia observar, enquanto comíamos, a bela planície alentejana.
A comida era óptima, bem confeccionada, e a sala cheirava a "asseio". Nas paredes, havia umas reproduções de uns quadros de alguns pintores portugueses. Recordo apenas o nome de um desses artistas, a já falecida Vieira da Silva e no seu quadro constava o seguinte dizer: "A POESIA ESTÁ NA RUA", numa clara alusão à revolução dos Cravos.
Nessa messe alentejana almoçava o nosso capitão, comandante de companhia, os sargentos e os guardas.
Normalmente o capitão almoçava numa nas mesas redondas com alguns sargentos e o cabo mais velho, outras vezes juntavam-se também a mulher ou filhos dos ditos que com eles almoçavam.
Nós, os guardas, almoçávamos nas outras mesas na companhia dos outros sargentos e, casualmente, com alguns dos nossos familiares.
Com o devido respeito, dentro do horário e de acordo com o serviço a desempenhar, cada um almoçava livremente sem ter que andar a pedir "licenças" para iniciar a refeição, etc.etc.
No tempo das férias escolares era costume haver bastantes miúdos, nossos filhos, a almoçar. O cabo responsável da messe colocava-os todos numa mesa. Era os filhos do capitão, eram os dos sargentos, eram os dos guardas, todos almoçavam juntos e por ali passavam as tardes na brincadeira.
1993: Extinção da Guarda Fiscal.
No início de 1994, com alguma admiração, vimos começar a levantar-se um muro de tijolo na velha sala da messe. Segundo se dizia, por obrigação do comando da GNR o Comandante de Compahia teria de fazer as suas refeições separado do resto do efectivo. E assim foi, o novo CMDT passou a comer isolado ou na companhia da esposa/filhos ou amigos. Os filhos do sr. tenente já não almoçavam com os filhos dos guardas e dos sargentos.
2008 é extinta a Brigada Fiscal e as instalações passam para o dispositivo territorial, sem o desejar transito também para o territorial.
Janeiro de 2010, por pressão dos sargentos, novo muro de tijolo se levanta na velha messe única dos guarda fiscais. Estava criada a messe para a meia dúzia de sargentos.
Quando vi a minha filha, de tabuleiro na mão, parada no meio da sala dos guardas a observar, pela porta aberta da messe do oficial, demoradamente, o Pires "cozinheiro" a servir a sopa à filha do sr.
capitão, que por acaso até anda na mesma universidade (Évora) que a minha rapariga, senti-me envergonhado, primeiro, enojado, depois.
Nunca mais, mesmo de serviço, comi naquela messe. Nem nunca mais a minha filha entrou naquele quartel.
Nada mais humilhante que vermos os nossos filhos segregados, como praticamente, já só acontece na GNR.
Ironia do destino: uma Guarda que foi criada para defender os valores republicados da Igualdade, Fraternidade e Liberdade, mas que ainda espelha a velha sociedade medieval.
 
 
Texto anónimo recebido via email, só para me chatearem...

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Apoio Judiciário nas Forças de Segurança

Segundo noticia o Público, no seguimento de uma reunião entre uma delegação do Sindicato dos Profissionais de Polícia com o CDS/PP, o líder desta força política veio pedir o alargamento do apoio judiciário do Estado aos agentes que são agredidos e ameaçados.
A este desiderato respondeu a Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública que o novo Estatuto, que entrará em vigor a 01 de Janeiro próximo, contempla essa prerrogativa.
Porque, como é sabido, o acesso à justiça é, nos dias que correm, muito oneroso, esta problemática é pertinente e de capital importância para os agentes das forças de segurança.
E, porque também sei que não lhe é dado o relevo que merece e que ainda há muita gente directamente interessada que a desconhece ou simplesmente a ignora, faço hoje uma abordagem da situação esperando com isto dar um pequeno contributo para a melhoria do sentimento de segurança dos próprios agentes e dos seus familiares.
Situação na PSP
Estatuto do Pessoal da PSP- Decreto-Lei n.º 511/99, de 24 de Novembro
Artigo 60.º
Patrocínio judiciário
1 - O pessoal com funções policiais tem direito a assistência e patrocínio judiciário em todos os processos-crime em que seja arguido por factos ocorridos por motivo de serviço.
2 - A assistência e o patrocínio judiciário são concedidos por despacho do director nacional, mediante requerimento do interessado, devidamente fundamentado.
3 - No despacho referido no número anterior é fixada a modalidade em que a assistência e o patrocínio são concedidos, podendo consistir no pagamento dos honorários do advogado proposto pelo interessado ou na contratação de advogado pela PSP.
Novo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 299/2009, de 14 de Outubro
Artigo 23.º
Apoio judiciário
O pessoal policial tem direito a apoio judiciário, que abrange a contratação de advogado, o pagamento de taxas de justiça e demais encargos do processo, sempre que nele intervenha na qualidade de assistente, arguido, autor ou réu, e o processo decorra do exercício das suas funções, mediante despacho fundamentado do director nacional, proferido por sua iniciativa ou mediante requerimento do interessado.
Situação na GNR
Estatuto dos Militares da GNR - Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho
Artigo 19.º
Garantias de defesa

3 – O militar da Guarda tem direito a receber do Estado patrocínio judiciário e assistência, que se traduz na dispensa do pagamento de preparos e custas e das demais despesas do processo, para defesa dos seus direitos e do seu bom nome e reputação, sempre que sejam afectados por motivo de serviço.

Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro
Artigo 23.º
Garantias de defesa

2 — O pessoal militar tem direito a apoio judiciário, que abrange a contratação de advogado, o pagamento de taxas de justiça e demais encargos do processo, sempre que nele intervenha na qualidade de assistente, arguido, autor ou réu, e o processo decorra do exercício das suas funções, mediante despacho fundamentado do comandante -geral, proferido por sua iniciativa ou mediante requerimento do interessado.

Do que ficou exposto podem, desde já, extrair-se duas conclusões: O tratamento igual daquilo que sempre foi igual - uniformidade da lei - e uma maior abrangência dos conceitos de patrocínio e assistência.
Como se pode verificar, o pessoal da PSP com funções policiais apenas auferia desta regalia em casos de constituição de arguido em processos-crime por factos ocorridos por motivo de serviço. Já o conceito de patrocínio judiciário e assistência aos militares da GNR era algo mais abrangente, alargando-o à defesa do bom nome e reputação.
Contudo, a ambiguidade ainda permitia interpretações dispares e decisões contraditórias, o que gerava alguma desconfiança levando a que os visados, muitas vezes, decidissem agir pelos próprios meios tendo de suportar custos quantas vezes superiores aquilo que podiam comportar.
Agora está bem claro o que é e em que consiste o apoio judiciário que abrange não só matéria criminal mas também de natureza cível.
É de saudar também a iniciativa legislativa e a correcção da fórmula que constava de um projecto de revisão dos estatutos da GNR que se resumia a isto:
2 - Em casos devidamente justificados pode o comandante-geral, mediante requerimento do interessado, providenciar pela contratação de advogado para assumir o patrocínio judiciário do militar demandado em virtude do exercício das suas funções.
O autor desta proposta deve sentir-se profundamente desgostoso pela mudança radical do teor e alcance da medida aprovada na versão final.
No que respeita à GNR fica ainda por resolver uma questão: Como será resolvido o problema relativamente ao pessoal de Carreira Florestal?
Penso que sei a resposta mas enquanto não se concretizar a possível integração nos quadros militares continuarão a ser agentes civis e, consequentemente, fora do alcance da protecção jurídica que o Estatuto confere aos militares.
Deixo uma recomendação final aos eventuais interessados. A iniciativa da obtenção das medidas de protecção jurídica previstas no Estatuto será, em regra, do próprio interessado, embora a lei preveja a iniciativa do Comandante-Geral (ou do Director Nacional no caso da PSP).
Por isso, sempre que se vejam envolvidos em casos que se enquadrem nos conceitos definidos na lei, devem de imediato providenciar para que lhes seja concedido o apoio a que têm direito o mais rápido possível porque os prazos processuais não se compadecem com eventuais atrasos na formulação dos pedidos.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Do Rio Tua ao Rio Pinhão - Arguido


A alteração da designação em processo penal do sujeito passivo, isto é, da parte contra quem decorre a acção penal, data de 1 de Janeiro de 1988, dia em que a entrou em vigor a respectiva lei do processo a qual introduziu profundas alterações ao nível da instrução e considerou, sobretudo, a pessoalidade da defesa, dando mais valor a esta do que à celeridade do processo.
E mesmo tendo decorrido mais de duas décadas sobre a actual designação e milhares de pessoas terem já assumido essa qualidade perante as autoridades judiciárias ou órgãos de polícia criminal, a verdade é que o termo arguido ainda é de difícil compreensão (o exemplo mais flagrante é o célebre “caso Maddie”) o que não sucedia com o clássico réu que qualquer pessoa identificava de imediato com algo ou alguém com culpa. Muitas vezes ouvi as pessoas da minha terra dizer, dirigindo-se aos mais pequenos quando faziam alguma asneira: estás com cara de réu!
Pois, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, entre 2002 e 2006, o número de arguidos em processos crime na fase de julgamento em Tribunais de 1.ª Instância situou-se entre os 90.000 e os 110.000, o que não deixa de ser muito relevante.

Período de referência dos dados

Arguidos em processos crime na fase de julgamento findos nos tribunais judiciais de 1ª instância

2006

107 267

2005

102 942

2004

104 969

2003

106 018

2002

97 595


A constituição de arguido obedece a requisitos legais definidos no Código de Processo Penal, nomeadamente:
Art. 57.º
1. A ssume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.
2. A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.
Art. 58.º
Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado.
Art. 59.º
Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior.
A pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.

Vem isto tudo a propósito de um episódio que levou à minha constituição como arguido e sujeição aos deveres inerentes, qualidade que supostamente ainda se mantém dado que formalmente ainda ninguém me comunicou o resultado do processo.
Estava eu tranquilamente no meu local de trabalho, mesmo sendo um sábado, dia em que não é muito usual trabalhar-se, quando dois indivíduos irrompem no Posto a pedir a intervenção da Guarda por causa de um negócio de castanhas mal concretizado e que envolvia cerca de seis mil contos, uma antiquada forma de denominar os milhares de escudos.
Os homens, dois irmãos, um comerciante e proprietário de uma residencial, o outro guarda-fiscal, vinham desde Carrazedo de Montenegro na peugada de um indivíduo das imediações do Porto a quem o primeiro vendera fiado o referido produto, que abunda naquela região e da melhor qualidade, e que foi revendendo pelo percurso de regresso à Invicta a um preço inferior ao da aquisição. E ao saberem disso logo intuíram que o mais certo era o tal indivíduo não planear pagar o que devia.
Mas souberam também que nesse dia iria a Presandães, nos subúrbios de Alijó, receber o valor de uma parte das castanhas que ali tinha transaccionado com um comerciante local e daí o pedido de auxílio para resolverem o problema que tinham em mãos.
Nunca foi regateado apoio a quem dele precisasse, não seria também daquela vez que a regra seria quebrada. Só lhes pedi que estivessem atentos e quando o forasteiro aparecesse que avisassem.
Era perto do meio-dia quando deram o aviso. Uma patrulha deslocou-se ao referido lugar com os dois irmãos e ordenou ao forasteiro que os acompanhasse ao Posto para esclarecer o negócio, o que ele acatou sem qualquer oposição, até porque ao ver a disposição dos dois irmãos terá achado que seria muito mais seguro ficar junto dos guardas.
O homem sentou-se à minha frente, identificou-se convenientemente e respondeu a todas as questões que lhe coloquei com muita segurança e clareza, frisando que nunca deixaria de honrar os compromissos assumidos e que o seu problema era apenas de disponibilidade imediata para pagar o que devia. E dado não ter consigo cheques nem se encontrar aberta qualquer dependência bancária onde pudesse obter um desses papéis, sugeriu que assinaria de bom grado uma letra de câmbio no valor da importância devida acrescida dos respectivos impostos…
Perante aqueles argumentos entendi que a minha intervenção devia ficar por ali, forneci os elementos de identificação aos dois irmãos e informei-os de que nada mais poderia fazer. A partir dali competia-lhes a eles entenderem-se e, por conseguinte, podiam ir embora. Contudo o forasteiro insistiu para que eles fossem adquirir o título de crédito que ele queria assiná-lo na minha presença como prova da sua boa fé, coisa de que eu nunca tinha duvidado. Não era o que esperavam os credores mas naquelas circunstâncias
não havia alternativa. E lá foram os dois irmãos à papelaria do Torcato comprar o documento pelo qual, só de imposto de selo, pagaram mais de sessenta contos.
Depois de tudo conferido e assinado pelos diversos intervenientes num clima de confiança recíproca, foram-se todos embora sem quaisquer ressentimentos e eu fiquei convencido que acabara de ajudar a resolver um problema bicudo a contento de todos.
Engano meu. Mal eu podia imaginar que tinha acabado de arranjar argumentos para ser constituído arguido por todos estes anos.
O comprador das castanhas era um daqueles indivíduos que olhamos para eles e algo nos diz estarmos perante um refinado patife. Baixote, “redondo”, é melhor de caracterizar se imaginarmos a cabeça em forma esférica em cima do tronco também esférico mas com um perímetro muito superior e duas grossas estacas com botas na extremidade inferior a segurar aquilo tudo… No meio da cara abolachada pontuavam dois olhitos pequenitos, traiçoeiros, mais parecidos com os de uma ratazana. Confesso que nunca lhe confiaria um alqueire de castanhas, muito menos um carregamento no valor de muitas centenas de contos.
Eu tinha quase a certeza que o problema entre os negociantes de castanhas não se iriam resolver de forma assim tão simples porque uma letra de câmbio obedece a regras bastante complexas porquanto, sendo certo que atribui ao sacado a obrigação de pagar ao tomador, o sacador permanece subsidiariamente responsável pelo pagamento da letra. Não sendo pago o título no seu vencimento, terá sempre de ser intentada uma acção judicial para o efeito. Mas a posse do documento sempre era o reconhecimento da dívida, o que até ali era sustentado apenas pela palavra de um e do outro.
O que eu não esperava era ver-me envolvido numa trama de contornos verdadeiramente kafkianos.
Algumas semanas depois fui convocado para comparecer no Tribunal. Ali sou confrontado com um inquérito instaurado com base numa denúncia apresentada pelo tipo com olhos de ratazana que, sem o mínimo pudor, desenvolveu uma história de fazer inveja ao próprio Franz K, onde pontificam acções como sequestro, coacção, detenção ilegal, etc.
Fui ouvido pelo funcionário que desempenhava funções na Delegação do Ministério Público e, como sempre, o meu profissionalismo e o sentimento de que quem não deve não teme, levou-me a descrever os factos tal como se passaram e fiquei descansado.
Mais uma vez me enganei. Decorridos alguns meses, uma nova chamada a Tribunal fez-me temer o pior. Desta vez era o Juiz de Instrução que estava com o processo. Constituiu-me formalmente arguido e não recordo se me aplicou o TIR (Termo de Identidade e Residência) porque as questões processuais nessa época não decorriam como agora. Se calhar tenho um TIR e não sei dele…
Relatei novamente os factos, manifestei a minha indignação e expliquei que toda a acção se enquadrava nas medidas de polícia legalmente estabelecidas e no quadro das competências conferidas por lei aos agentes das forças de segurança mas, pelo sim pelo não, dei conta do sucedido superiormente.
Penso que fui convincente porque nunca mais fui incomodado com esse caso.
Certo é que até agora desconheço qual foi o desfecho do processo e acerca da minha qualidade de arguido sempre se pode argumentar que, sendo também o particípio passado do verbo arguir, estará morto e enterrado…

domingo, 29 de março de 2009

O "Risadas"


O “Risadas” era um árbitro de futebol. Flaviense, empresário na área da restauração, exercia a função de juiz nos torneios e campeonatos de futebol organizados pela Associação de Futebol de Vila Real, em part time, como todos, e não era melhor nem pior que os outros. Mas, como constantemente ocorre em eventos desta natureza, as suas decisões nunca eram a contento de todos razão pela qual, sempre que sancionava qualquer falta, era vítima de enormes assobiadelas, à mistura com impropérios de toda a ordem. Nada que ele não suportasse estoicamente e, ao contrário do que acontecia com alguns mais sensíveis, nunca exigiu às forças policiais que detivessem os detractores, tanto dele como da sua progenitora, ou outra medida repressiva que naquelas circunstâncias nunca ou dificilmente seria exequível.
A própria fisionomia atraiçoava-o. É que sempre que era vaiado e insultado olhava a assistência de um modo que dava a sensação de estar permanentemente com um sorriso trocista estampado no rosto e isso exacerbava ainda mais os exaltados ânimos do público. E atrás dos insultos vinham as ameaças: - estás-te a rir mas deixa estar que quando saíres cá para fora vais levar nos c*****
A verdade é que quase sempre havia sarilhos nos jogos em que ele e os seus acólitos participavam, o que obrigava as forças policiais a tomar mediadas de segurança excepcionais.
Não foi o caso naquele domingo ameno e soalheiro.
O jogo de futebol realizado no estádio do Alijoense, da primeira divisão distrital da Associação de Futebol de Vila Real, terminou sem quaisquer incidentes e o “Risadas” até se permitiu dispensar a protecção da força policial, mesmo antes de entrar para os balneários.
E em boa hora o fez. É que mal tínhamos chegado ao Posto já estava a ser solicitada a presença da Guarda na aldeia de Castedo do Douro por causa de uma alteração da ordem num café.
Uma alteração da ordem que, soubemos lá, não chegou a consumar-se e também neste aspecto o dia foi excepcional. A chamada tinha sido feita por um cliente que, já bastante etilizado pela excessiva quantidade de “água” ingerida ao longo da tarde, referiu à dona do estabelecimento que precisava fazer um telefonema para chamar a Guarda porque queria acertar as contas com um vizinho. Constava-se que esse vizinho era visita assídua da sua casa quando estava ausente, o que lhe causava enormes dores de cabeça. Acabou por ir dormir para ver se passava…
Já de regresso ao Posto, à saída da localidade, uma travagem brusca de um automóvel e a forma como o automobilista gesticulava e accionava o sinal sonoro captou a nossa atenção. Era o “Risadas” e a sua equipa. E só de olhar para ele já se adivinhava que o caldo estava entornado. O sangue que jorrava de um sobrolho fendido, o vidro da porta do lado do motorista partido e o carro com algumas mossas eram as marcas visíveis da troca de mimos com que foi presenteado na nossa ausência. Mas como foi possível?
– Senhor comandante, venha depressa para prendê-los, eu ainda estou sob protecção policial, o senhor tem de ir prender os agressores… – atirou-me de rajada.
– O que foi que aconteceu? Inquiri.
– Foi um grupo de adeptos do Alijoense, junto do Café Apolo, temos de ir depressa que eles ainda lá estão…
– Vamos lá ver então, retorqui.
Pelo caminho ia planeando a intervenção num caso daquele melindre e à entrada da vila parei, apeei-me e fui falar com o árbitro. Referi-lhe as minhas preocupações em voltar ao local da agressão e aconselhei-o de que, à cautela, era melhor seguir para o Posto por outro caminho sem passar pelo Centro que eu iria tentar identificar os agressores para depois formalizar a queixa. A minha preocupação era mesmo evitar que a presença dele no local do crime acirrasse os ânimos novamente e assim evitar novos confrontos físicos. Mas ele foi irredutível. Que não, que queria ir ao local, que só ele é que sabia identificá-los…
Continuamos.
Parei no Largo do Chafariz. O centro nevrálgico da simpática Vila duriense estava praticamente deserto, coisa inédita naquela terra, num dia daqueles e àquela hora. À direita, o café Apolo 11, onde teria ocorrido a agressão, vazio, à esquerda o Café da Paz, tertúlia onde se enterravam os vivos e desenterravam os mortos, também quase vazio. Pelo passeio circulava, casualmente, um funcionário das Finanças, que na data exercia as funções de tesoureiro do clube, alheio à nossa presença, a “assobiar” para o ar… Aproximei-me e ainda lhe perguntei se tinha presenciado algum desacato com os árbitros mas… nada, não sabia de nada.
Fomos mesmo para o Posto e comecei a redigir o auto de queixa. A meio do acto fui informado que o tesoureiro do Alijoense, o mesmo personagem com quem me cruzara momentos antes, queria falar comigo. Interrompi o que estava a fazer e mandei-o entrar. Não foi bem para falar comigo mas sim com o “Risadas”… Que se deixasse daquilo, que pagavam os prejuízos e os curativos, que desistisse da queixa. Foi de tal modo convincente que o “Risadas” desistiu mesmo de formalizar a queixa e foram todos embora.
A denúncia da agressão nunca chegou ao Tribunal porque, tratando-se de um crime de natureza semi-pública, a vontade do ofendido para prosseguir era determinante. Mas a minha curiosidade não ficou satisfeita. Investiguei. E a minha persistência colheu frutos.
Depois de tomar banho, o árbitro e a sua equipa, como era prática corrente, foi convidado para beber um copo. Foram ao Pisca, o estabelecimento mais próximo do estádio, e para acompanhar o bom vinho duriense foi servido um pica-pau. Estava bom mas o “Risadas” queria tripas e no Pisca não havia. Onde devia haver era no Apolo 11, tinha sempre, e lá foram. O Apolo 11 era explorado pelo irmão de um jogador do Alijoense com quem, tempos antes, na Régua, o mesmo árbitro tivera um desentendimento. Esse jogador estava lá e um tio, elemento da direcção do clube local, também. E começaram as picardias. Primeiro umas bocas, depois as ameaças, o ambiente azedou a ponto de terem de abandonar o local. Já o “Risadas” estava no carro chegaram a vias de facto, tendo como resultado o triste cenário que descrevi anteriormente.
Após receber um cheque no valor de cinquenta contos para pagamento dos prejuízos no automóvel e de aconchegar o estômago e sarar as chagas com mais uns copos de vinho tratado, de uma reserva particular, rumou ao norte em paz, quente por dentro e por fora, mas não lhe serviu de emenda.
Voltou a Alijó, levou um soberbo pontapé em pleno recinto desportivo que o deixou estatelado no solo e abandonou o estádio protegido por uma escolta policial, reforçada para o efeito.
Também desta vez prescindiu de formalizar a queixa contra o agressor, retido nos balneários até ao final do jogo a aguardar a decisão do ofendido.
… E o cheque estava “careca”!!!

sábado, 7 de março de 2009

Direito à Liberdade e à Segurança

Os membros das Forças de Segurança cumprem os deveres que a Lei lhes impõe, servem o interesse público, defendem as instituições democráticas, protegem todas as pessoas contra actos ilegais e respeitam os direitos humanos.

Código Deontológico do Serviço Policial

Apresentou-se no Posto policial faltava pouco para as catorze horas e o problema era grave. Deslocara-se da cidade do Porto, onde exercia a sua actividade empresarial e dirigia-se ao Tribunal local onde iria ter lugar, nessa tarde, uma arrematação de bens em que pretendia exercer o seu direito de licitação para evitar que fossem adjudicados ao desbarato e assim serem goradas as suas legítimas expectativas de recuperação dos valores que lhe eram devidos. Mas três ou quatro indivíduos que já se encontravam à entrada da Casa da Justiça não só o impediram de aceder àquele local como também ameaçaram a sua integridade física, pelo que desejava que lhe fosse garantida a necessária segurança para participar naquele acto público.
Era um indivíduo bem apresentado, de mediana idade e notava-se que sabia bem o que queria e como obtê-lo. A presença a seu lado, ou atrás, de um graduado policial em pré aposentação denotava algum cuidado com a sua segurança pessoal e avalizava a intervenção naquele evento.
O que estava em causa eram dívidas que não foram satisfeitas atempadamente e, por tal motivo, o credor promoveu a cobrança coerciva junto das instâncias judiciais. Para tal foram arrolados bens patrimoniais cuja execução ia ser levada a efeito através da referida venda em hasta pública. Contudo, o executante, certamente “escaldado” com outras situações idênticas, não se deixou ficar calmamente à espera que o seu dinheiro lhe fosse parar às mãos por artes mágicas. Por isso ali estava, não para adquirir os bens mas para licitar até garantir o valor suficiente que permitisse a liquidação do débito.
Aparentemente era um caso simples. Os quatro ou cinco elementos da força da ordem disponíveis seriam mais do que suficientes para garantir o livre acesso do cidadão ao Tribunal e em segurança. Porém, as previsões falharam completamente. É que à entrada do Palácio da Justiça não estavam apenas as pessoas que nos tinham sido referidas mas cerca de uma centena, em atitude hostil e dispostos a impedir o acesso daquele forasteiro licitador. Naquelas condições, o comandante da força promoveu o regresso do executante e do seu acompanhante ao Posto e permaneceu no local para recolher informações acerca do que realmente estava a suceder, quais as motivações para tal procedimento e assegurar a ligação entre o comando policial e a autoridade judiciária.
Entretanto, para garantir a segurança e a liberdade do acto, oficiosamente e com observância dos princípios de actuação consagrados na lei, foi pedido ao escalão superior o reforço policial necessário, o que demoraria uma a duas horas. Espaço de tempo que foi aproveitado para estabelecer contactos com a autoridade judicial e delinear uma acção que permitisse a realização dos fins em vista. Num desses contactos, o executante pediu para falar com o Juiz e questionou-o sobre a viabilidade de licitar por escrito, o que foi aceite. Assim fez e logo que teve o comprovativo da sua licitação regressou ao Porto.
Após isto tudo foi mais fácil.
Já com um dispositivo policial adequado, o Tribunal foi evacuado, as pessoas voltaram a entrar após uma revista para controlo de eventual porte de armas e o leilão decorreu sem mais incidentes.
Só que o trabalho policial não se ficou por ali. Era preciso identificar convenientemente os mentores da perturbação do acto, de que existiam algumas referências, e levá-los a responder criminalmente pelos factos que praticaram. Era tudo gente conhecida, habitantes de uma das mais belas e simpáticas aldeias durienses, Santa Eugénia, uma população de índole laboriosa, amável e ordeira, cuja acção achamos surpreendente e despropositada, típica de situações extremas em que são colocados em causa os superiores interesses colectivos.
Para tal deu-se início a uma série de diligências a fim de determinar o grau de responsabilidade de cada um e a sua subsunção aos preceitos do Código Penal.
Foi no âmbito de uma dessas diligências que poucos dias depois se apresentou no Posto um dos referenciados instigadores da rebelião. Entrou no gabinete do comando com um jornal debaixo do braço e mesmo antes de se iniciar o acto para que fora previamente convocado adiantou: Vejam só quem vocês estiveram a proteger; um ladrão…
Na primeira página de um jornal diário do Porto figurava o mesmo indivíduo que estivera na génese do alvoroço que descrevi a traços largos. A acompanhar a fotografia um extenso texto recheado de termos como usura, agiotagem, chantagem, extorsão… relatava a sua detenção e prisão preventiva, indiciado da prática reiterada de delitos criminais relacionados com actos de natureza económica.
A estratégia consistia em frequentar locais de desenvolvimento de jogos de fortuna e azar onde estava sempre pronto a financiar o vício de incautos apostadores a custos elevadíssimos ou aproximar-se de empresários em dificuldades financeiras a quem emprestava dinheiro com taxas de juro incomportáveis.
Naquele caso a vítima foi um jovem que se deslumbrou com o brilho psicadélico e ilusório dos néones dos casinos, comprometendo assim o património próprio e o dos pais.
Nunca se soube como ficou o pleito judicial relacionado com a arrematação mas o resto foi “arquivado” naquele preciso momento…