Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.

domingo, 29 de março de 2009

O "Risadas"


O “Risadas” era um árbitro de futebol. Flaviense, empresário na área da restauração, exercia a função de juiz nos torneios e campeonatos de futebol organizados pela Associação de Futebol de Vila Real, em part time, como todos, e não era melhor nem pior que os outros. Mas, como constantemente ocorre em eventos desta natureza, as suas decisões nunca eram a contento de todos razão pela qual, sempre que sancionava qualquer falta, era vítima de enormes assobiadelas, à mistura com impropérios de toda a ordem. Nada que ele não suportasse estoicamente e, ao contrário do que acontecia com alguns mais sensíveis, nunca exigiu às forças policiais que detivessem os detractores, tanto dele como da sua progenitora, ou outra medida repressiva que naquelas circunstâncias nunca ou dificilmente seria exequível.
A própria fisionomia atraiçoava-o. É que sempre que era vaiado e insultado olhava a assistência de um modo que dava a sensação de estar permanentemente com um sorriso trocista estampado no rosto e isso exacerbava ainda mais os exaltados ânimos do público. E atrás dos insultos vinham as ameaças: - estás-te a rir mas deixa estar que quando saíres cá para fora vais levar nos c*****
A verdade é que quase sempre havia sarilhos nos jogos em que ele e os seus acólitos participavam, o que obrigava as forças policiais a tomar mediadas de segurança excepcionais.
Não foi o caso naquele domingo ameno e soalheiro.
O jogo de futebol realizado no estádio do Alijoense, da primeira divisão distrital da Associação de Futebol de Vila Real, terminou sem quaisquer incidentes e o “Risadas” até se permitiu dispensar a protecção da força policial, mesmo antes de entrar para os balneários.
E em boa hora o fez. É que mal tínhamos chegado ao Posto já estava a ser solicitada a presença da Guarda na aldeia de Castedo do Douro por causa de uma alteração da ordem num café.
Uma alteração da ordem que, soubemos lá, não chegou a consumar-se e também neste aspecto o dia foi excepcional. A chamada tinha sido feita por um cliente que, já bastante etilizado pela excessiva quantidade de “água” ingerida ao longo da tarde, referiu à dona do estabelecimento que precisava fazer um telefonema para chamar a Guarda porque queria acertar as contas com um vizinho. Constava-se que esse vizinho era visita assídua da sua casa quando estava ausente, o que lhe causava enormes dores de cabeça. Acabou por ir dormir para ver se passava…
Já de regresso ao Posto, à saída da localidade, uma travagem brusca de um automóvel e a forma como o automobilista gesticulava e accionava o sinal sonoro captou a nossa atenção. Era o “Risadas” e a sua equipa. E só de olhar para ele já se adivinhava que o caldo estava entornado. O sangue que jorrava de um sobrolho fendido, o vidro da porta do lado do motorista partido e o carro com algumas mossas eram as marcas visíveis da troca de mimos com que foi presenteado na nossa ausência. Mas como foi possível?
– Senhor comandante, venha depressa para prendê-los, eu ainda estou sob protecção policial, o senhor tem de ir prender os agressores… – atirou-me de rajada.
– O que foi que aconteceu? Inquiri.
– Foi um grupo de adeptos do Alijoense, junto do Café Apolo, temos de ir depressa que eles ainda lá estão…
– Vamos lá ver então, retorqui.
Pelo caminho ia planeando a intervenção num caso daquele melindre e à entrada da vila parei, apeei-me e fui falar com o árbitro. Referi-lhe as minhas preocupações em voltar ao local da agressão e aconselhei-o de que, à cautela, era melhor seguir para o Posto por outro caminho sem passar pelo Centro que eu iria tentar identificar os agressores para depois formalizar a queixa. A minha preocupação era mesmo evitar que a presença dele no local do crime acirrasse os ânimos novamente e assim evitar novos confrontos físicos. Mas ele foi irredutível. Que não, que queria ir ao local, que só ele é que sabia identificá-los…
Continuamos.
Parei no Largo do Chafariz. O centro nevrálgico da simpática Vila duriense estava praticamente deserto, coisa inédita naquela terra, num dia daqueles e àquela hora. À direita, o café Apolo 11, onde teria ocorrido a agressão, vazio, à esquerda o Café da Paz, tertúlia onde se enterravam os vivos e desenterravam os mortos, também quase vazio. Pelo passeio circulava, casualmente, um funcionário das Finanças, que na data exercia as funções de tesoureiro do clube, alheio à nossa presença, a “assobiar” para o ar… Aproximei-me e ainda lhe perguntei se tinha presenciado algum desacato com os árbitros mas… nada, não sabia de nada.
Fomos mesmo para o Posto e comecei a redigir o auto de queixa. A meio do acto fui informado que o tesoureiro do Alijoense, o mesmo personagem com quem me cruzara momentos antes, queria falar comigo. Interrompi o que estava a fazer e mandei-o entrar. Não foi bem para falar comigo mas sim com o “Risadas”… Que se deixasse daquilo, que pagavam os prejuízos e os curativos, que desistisse da queixa. Foi de tal modo convincente que o “Risadas” desistiu mesmo de formalizar a queixa e foram todos embora.
A denúncia da agressão nunca chegou ao Tribunal porque, tratando-se de um crime de natureza semi-pública, a vontade do ofendido para prosseguir era determinante. Mas a minha curiosidade não ficou satisfeita. Investiguei. E a minha persistência colheu frutos.
Depois de tomar banho, o árbitro e a sua equipa, como era prática corrente, foi convidado para beber um copo. Foram ao Pisca, o estabelecimento mais próximo do estádio, e para acompanhar o bom vinho duriense foi servido um pica-pau. Estava bom mas o “Risadas” queria tripas e no Pisca não havia. Onde devia haver era no Apolo 11, tinha sempre, e lá foram. O Apolo 11 era explorado pelo irmão de um jogador do Alijoense com quem, tempos antes, na Régua, o mesmo árbitro tivera um desentendimento. Esse jogador estava lá e um tio, elemento da direcção do clube local, também. E começaram as picardias. Primeiro umas bocas, depois as ameaças, o ambiente azedou a ponto de terem de abandonar o local. Já o “Risadas” estava no carro chegaram a vias de facto, tendo como resultado o triste cenário que descrevi anteriormente.
Após receber um cheque no valor de cinquenta contos para pagamento dos prejuízos no automóvel e de aconchegar o estômago e sarar as chagas com mais uns copos de vinho tratado, de uma reserva particular, rumou ao norte em paz, quente por dentro e por fora, mas não lhe serviu de emenda.
Voltou a Alijó, levou um soberbo pontapé em pleno recinto desportivo que o deixou estatelado no solo e abandonou o estádio protegido por uma escolta policial, reforçada para o efeito.
Também desta vez prescindiu de formalizar a queixa contra o agressor, retido nos balneários até ao final do jogo a aguardar a decisão do ofendido.
… E o cheque estava “careca”!!!