Auxiliar de Memórias

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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Uma espécie de funcionário público III


         Era bastante tarde quando chegou, já Dorinda se encontrava na cama, com o dedo na crica, como de costume, a tentar dormir.
         Entrou no quarto silenciosamente, despiu-se e acomodou-se no leito conjugal. Voltou-se para a Dorinda que estava de costas e subitamente sentiu vontade de a possuir. A sua virilidade voltara como por artes mágicas e começou a esfregar o pénis no traseiro da mulher, embora o pensamento se encontrasse longe, com outras imagens. A Dorinda não deu sinal de acordar mas remexou-se e empinou o rabo de modo a facilitar a vida ao garanhão que, desse modo, a penetrou com uma fúria pouco habitual.
         Foi uma sessão de sexo puro e duro, sem preliminares, sem carícias, sem palavras, apenas sexo. Um sexo selvagem que terminou dois minutos após ter começado e só serviu ao homem para recuperar o seu amor-próprio e à mulher para acumular mais frustrações por um amor mal resolvido.
         Dali em diante as avarias na casa da vila e o excesso de trabalho no cartório passaram a ser mais frequentes e o senhor Antoninho passou a voltar para casa cada vez mais tarde e, por vezes, até a pernoitar fora. E, enquanto isso, a vida sexual do casal voltou à pasmaceira anterior, o que levava a Dorinda a cismar acerca do que se passaria consigo mesma para ser assim repudiada pelo marido. Foi a uma cartomante que viu nas cartas uma rapariga jovem mas recusou-se a acreditar porque o seu António nem azeite tinha para fazer alumiar a lamparina lá de casa muito menos enredar-se com uma jovem que seria, certamente, muito mais exigente. Mas a partir daí a imagem de uma jovem, fogosa como a “república”, passou a persegui-la incessantemente.
         A verdade é que enquanto a Dorinda continuava lá por casa a matutar e a encorricar, o seu António, o senhor Antoninho, vivia um romance de sonho com a fogosa Gaby, facto que já era alvo de comentários no serviço e nos cafés da vila, no mercado e na praça de táxis, e até já se repercutia nos adros das igrejas das aldeias.
         Uma vizinha segredou-lhe que se constava algo acerca da vida amorosa do António e, apesar de repudiar vivamente essas insinuações, o fantasma da traição inculcava-se mais e mais na sua cabeça já de si muito confundida com as próprias suspeitas.
         Um dia confrontou o marido com as suas dúvidas mas nada ficou claro apesar dele repetir as juras de fidelidade e amor eterno, que era tudo por causa do excesso de trabalho, que o chefe lhe tinha determinado objectivos difíceis de atingir e se não os alcançasse não teria aumento salarial nem progressão na carreira, podendo ainda ser deslocado para “cascos de rolha”, o que seria desastroso para a vida do casal. Para lhe demonstrar o quanto estava equivocada, levou-a carinhosamente para o quarto, beijou-a apaixonadamente e fez-lhe uma imensidade de carícias em locais que ela desconhecia terem tanta sensibilidade. Sentiu-se culpada por ter duvidado do seu homem e fizeram amor como nunca tinham feito. O António até a colocou de quatro e comeu-a assim, como fazem os cães e os porcos e outros animais, uma novidade no relacionamento amoroso da parelha. E seguiram-se outros episódios não menos escaldantes nos dois dias seguintes. Porém, o início de mais uma semana de trabalho reverteu aquela lua-de-mel surpresa e a rotina e os fantasmas da Dorinda voltaram a tomar conta de todo o seu ser.
         Para piorar tudo, descobriu num bolso do António uma carteirinha com dois comprimidos onde se lia “Cialis” e ficou preocupada. Andas doente? Tens uns comprimidos no bolso do casaco… Ah, não é nada, não te preocupes, foi o doutor Fagundes que me prescreveu um fortificante cerebral por causa do excesso de trabalho… Pesquisou na internet e verificou que o excesso de trabalho seria na cabeça situada entre as pernas. Agora já quase não tinha dúvidas e sentiu na cabeça o duro peso da armação que o marido lhe andara a arranjar. Só faltava saber com quem e porquê.
         Naquela casa já nada voltaria a ser como antes. A Dorinda definhava com as suas suspeitas. Estava mais magra, com olheiras profundas e cada vez mais engelhada. Desabafou com a filha, num fim-de-semana em que esta veio a casa para se reabastecer de batatas, cebolas, hortaliça diversa, uma galinha e dois coelhos mas também ali não encontrou a paz de espírito de que necessitava. Tinha de ser ela a tirar tudo a limpo.
         Dali em diante passou a espiar tudo que o marido fazia, a vasculhar os bolsos do vestuário, a cheirar, a procurar indícios de uma infidelidade em que ainda se recusava a acreditar mas não encontrou mais nada. Já só restava fazer uma “pesquisa de campo” e foi o que se propôs fazer: seguiria os passos do marido, como uma sombra, até descobrir onde é que ele andava a “pastar”.
         Não era propriamente uma perita em seguir pessoas e tinha de cuidar da vida da casa, deslocar-se à vila de táxi ou de camioneta e regressar antes do António, para que este não descobrisse que o andava a vigiar. Regressava quase sempre estafada e sem obter qualquer resposta para os seus tormentos.
         Por fim uma velha conhecida que tinha uma retrosaria na vila gracejou-lhe com um piscar de olho, o senhor Antoninho ontem estava muito bem acompanhado na pastelaria ali da esquina! Ah, coitado, ele não é desses, mata-se de trabalho aqui e vai sempre a correr para casa para tratar da vinha e da horta… Ai então devo-o ter confundido com outra pessoa porque já eram dez e meia da noite.
         Se já andava angustiada mais ficou ainda. De facto, no dia anterior o seu António não tinha ido para casa porque havia um trabalho extra para fazer, muito urgente, e por isso precisava dormir na casa da vila… Grande patife! Pois ainda que tenha de vir para cá todos os dias juro que hei-de saber quem é a galdéria!
         Naquele dia estava decidida a tudo. Depois das lides diárias a cuidar dos animais aos quais brindou com uma dose extra de ração e água, tomou banho, vestiu-se com o melhor que tinha, pôs um perfume caro que o António lhe tinha oferecido no aniversário de casamento e tomou a camioneta das onze com destino à vila. Não tinha pressa. Esperaria que o marido saísse do emprego e segui-lo-ia até à “toca” da hiena. Observou as novidades nas montras das lojas descontraidamente, foi à cabeleireira arranjar o cabelo, passou pela drogaria onde comprou alguns artigos de que precisava e, por fim, postou-se num canto da praça em frente ao cartório notarial de onde podia controlar os acessos ao mesmo, bem dissimulada com os arbustos do pequeno jardim.
         Não foi preciso esperar muito. Eram cinco e meia em ponto quando o António assomou à porta do cartório, muito sorridente, a falar descontraidamente com uma rapariga que já conhecia de vista desde aquela vez que fora ao médico e passara pelo local de trabalho do marido para que este lhe levasse uns medicamentos que a farmácia só receberia lá mais para a tarde.
         Parecia perfeitamente normal que assim fosse. Eram colegas de trabalho, certamente viriam a falar de alguma peripécia mais engraçada que tivesse ocorrido lá no cartório, mas continuaram muito juntos pela rua abaixo. Um acesso de ciúme fez tremer de raiva a Dorinda que, ainda sem quaisquer certezas, arranjou forças para se conter e não armar um escândalo ali mesmo, em público e em pleno centro da vila.
         Seguiu-os e viu-os a entrar na pastelaria de que lhe falara a amiga da retrosaria. Continuou devagar, rua abaixo, e aproximou-se do estabelecimento. Espreitou por uma esquina da ampla vitrina e viu o par de pombinhos sentados numa mesa, ele de costas para a rua e a rapariga ao seu lado direito, com uma parte generosa das portentosas coxas à mostra.
         Viu o António pousar a mão naquela pedaço de carne perante a passividade da jovem e de seguida a beijarem-se. Uma imensa raiva turvou-lhe a vista. Cerrou os dentes com força para não começar a gritar, secou o suor das mãos na saia e, decidida a pôr um ponto final naquela farsa, entrou na pastelaria.
         Tão embrenhados estavam naquele idílio que só deram pela presença da Dorinda quando esta estacou, pálida e serena, junto da sua mesa. Assim que a viu o António vacilou mas depressa recuperou a compostura e atalhou: Dorinda, por aqui? Passou-se alguma coisa? Olha, eu estava mesmo de saída para ir para casa… Ah, apresento-te a Gabriela, a minha colega de que já tínhamos falado há tempos… Viemos só tomar um cafezinho e acertar umas coisas para amanhã… Mas, que se passa? Estás doente?
         A Dorinda não ouviu nada do que o António disse. Olhou a Gabriela de cima a baixo, sentou-se calmamente, colocou o saco com as compras ao seu lado e pediu uma água. A Gabriela tentou ser simpática e disse-lhe que já andava com vontade de a conhecer há muito tempo, que o António lhe dizia maravilhas dela, que a devia amar muito, que era uma mulher com sorte por ter um marido assim tão dedicado. Mas, perante a passividade da mulher, achou mais prudente calar-se.
Também o senhor Antoninho perdeu a fala e por alguns instantes o silêncio tornou-se algo embaraçoso. Por fim a Dorinda voltou-se para o marido e disse: olha, comprei uma coisa para ti… Debruçou-se sobre o saco das compras, remexeu um bocado e, num gesto repentino, derramou sobre o abdómen do António o líquido de um frasco de litro e meio cujo rótulo avisava para os perigos de uso e tinha escrito “ácido fluorídrico”. Seu porco! Se não fores para mim também não hás-de ser para mais ninguém! Pegou nas suas coisas e saiu tão calmamente como tinha entrado.
         O poderoso ácido foi rápido na sua acção destruidora não permitindo ao desditoso homem evitar o contacto com os tecidos abdominais, órgãos genitais e coxas. Quando se apercebeu do ataque era tarde. Tentou levantar-se, sacudiu-se, gritou por socorro mas o efeito destrutivo do potente líquido continuava inexoravelmente a sua acção. A Gabriela desmaiou e alguém accionou os meios de socorro e a Guarda. Entretanto o senhor Antoninho continuou a gritar e a sacudir o que restava do vestuário o que lhe provocou fortes queimaduras nas mãos e nos pulsos. Acabou por desmaiar com as dores e foi nesse estado de inconsciência transportado para o hospital.