Estava sentado no lugar do condutor, numa posição perfeitamente correcta, as mãos sobre as coxas e a cabeça um pouco inclinada para trás. Se não fosse a cadavérica lividez do rosto e os olhos abertos dir-se-ia que estava a dormir. Mas não. Estava morto.
No banco ao lado estava um saco de papel vazio e sobre o abdómen uma pistola da calibre 7,65. Uma perfuração na têmpora do lado direito e o sangue que jorrara abundantemente da ferida denunciavam a forma como terminara a vida daquele jovem, no meio de um pinhal algures na serra entre Fundões e Souto de Escarão. Ninguém o conhecia.
O alerta, proveniente da Balsa, foi dado ao princípio da tarde e revelava apenas que havia um carro com um homem morto no interior.
Os procedimentos eram sempre idênticos: avisar o Delegado de Saúde e o Delegado do Ministério Público e dirigirmo-nos para o local da ocorrência.
O percurso demorava cerca de quarenta e cinco minutos, primeiro pela Estrada Nacional 212 até ao Pópulo, depois até à Balsa, no limite com o concelho de Sabrosa, pela Estrada Nacional 15. Eram cerca de vinte e dois quilómetros com muitas curvas e contra-curvas, numa viatura com pouca aptidão para aquelas vias mas que se revelava extremamente útil em todo-o-terreno quando era preciso aceder a lugares mais inóspitos.
Na Balsa não encontramos nada nem alguém que nos informasse do sucedido. Viramos à esquerda, pela EN-323 em direcção ao centro da localidade mas depressa desistimos. Voltamos à EN-15 em sentido contrário e viramos á direita pela Estrada Municipal 1254 em direcção a Souto Escarão e nada. Quase desistíamos mas faltava explorar o desvio para Fundões e foi o que fizemos. Escassos duzentos metros percorridos e a presença de algumas pessoas na estreita via municipal indicou que estávamos próximo do objectivo.
Assim era de facto. Referenciamos o local no interior do pinhal e após umas dezenas de metros percorridos por um caminho em terra na densa floresta deparámo-nos com o cenário já descrito. O automóvel, um Citroen CX já com bastantes anos de uso, estava trancado e a chave na ignição, o que dificultava qualquer tentativa de identificação do ocupante. E relativamente à viatura nem pensar porque naquele tempo a identificação do proprietário demoraria pelo menos duas semanas. Contudo, uma tentativa de abertura da mala foi bem sucedida e permitiu aceder ao interior do automóvel e ao bilhete de identidade que continha o nome dos pais e referia ser natural de Vila Verde. Mesmo assim nenhum dos presentes nos soube dizer quem seriam os familiares mas alguém alvitrou que poderia ser filho de um senhor de Vila Verde, de nome igual ao que constava no documento, que andava a estudar em Vila Real.
Vila Verde é a freguesia mais a norte e com maior extensão do concelho de Alijó. Contrariamente às restantes, bastante concentradas, caracteriza-se por ser composta de diversas e dispersas aldeias: Freixo, Perafita, Jorjais, Vale de Agodim, Balsa, Fundões e Souto de Escarão, além da maior e da qual recebe o nome. Fomos no seguimento desta pista.
Um guarda permaneceu no local e com o motorista dirigi-me a esta aldeia para dar a trágica notícia aos familiares. Encontramos o casal junto da residência, tinham acabado de chegar do campo. É uma tarefa difícil transmitir uma informação do quilate daquela que me tinha levado ali e para mim representava um sério constrangimento. Contudo, comecei prudentemente por perguntar se tinham um filho em Vila Real ao que me responderam, visivelmente apreensivos, que sim. O caso ficava mais complicado mas tentei adiar o choque ainda mais um pouco mostrando-lhes a fotografia do malogrado jovem. Foi notório o alívio no semblante daqueles pais quando me afirmaram que não, não o conheciam. E mais aliviado fiquei eu por me sentir desobrigado de cumprir com o doloroso dever de lhes comunicar o óbito do filho...
Assim voltamos à estaca zero. Mas não me dei por vencido. Com o nome, data de nascimento e filiação era possível saber algo mais e o radiotransmissor do jeep cumpriu bem a sua função. Forneci os dados de que dispunha ao Posto e solicitei que alguém se deslocasse ao Registo Civil explorando a única pista de que dispúnhamos para localizar a família do defunto. A resposta foi célere e ainda antes de chegarem ao local as autoridades sanitária e judicial já eu tinha na minha posse os elementos que me permitiam contactar os familiares. Tinha nascido efectivamente em Souto de Escarão mas, de tenra idade, os pais tinham ido residir para o Porto e tinham perdido os laços com o lugar de origem onde apenas se encontravam alguns familiares já bastante afastados. Dei então instruções para no Posto desenvolverem os contactos com vista a informar a família do sucedido.
A minha atenção voltou-se agora para o cadáver e para o cenário da tragédia. Havia algo que não encaixava na hipótese de suicídio: a pistola encontrava-se sobre o abdómen mas com a coronha voltada para o lado esquerdo, a culatra para baixo. O suicida disparou com a mão direita e o mais lógico seria a arma cair para o mesmo lado, tendo em atenção que a detonação produz uma determinada força para a retaguarda… E não faltava à minha volta quem explanasse intrincadas teorias dignas de um comissário Maigret, de um Sherlock Holmes ou de um Hercule Poirot.
Procedi à recolha da arma com o necessário cuidado para não danificar quaisquer vestígios que pudessem trazer luz ao caso e nessa tarefa algo seguro na mão esquerda do cadáver me despertou a atenção. Retirei com cautela o papel que despontava por entre a palma da mão e o polegar. Era uma fotografia tipo passe de um menino que aparentava ter dois ou três anos de idade. Tinha escrito no verso - perdoa-me, meu filho!
Depois de promovidas todas as formalidades legais procedeu-se à remoção do cadáver para a morgue e do automóvel para o parque do posto à ordem do Tribunal, para onde foram enviados todos os objectos passíveis de constituir prova da ocorrência, nomeadamente a arma e a fotografia, acompanhados do respectivo auto.
A arma foi reclamada pelos Serviços Prisionais a cujo corpo de polícia pertencia o malogrado jovem e o automóvel entregue alguns dias mais tarde à viúva.
Nunca consegui explicação para o facto do suicida se deslocar desde Matosinhos até aos confins do Alto Douro, embora o Delegado de Saúde fosse peremptório na explicação em que relacionava o facto de ter nascido nas proximidades com a determinação de pôr termo à vida, certamente numa fase de grande conflitualidade interior e, certamente, fortes motivações externas de ordem social ou afectiva. A hipótese de crime nunca foi levantada e até na minha mente se desvaneceu em face da mensagem escrita no verso da fotografia daquele menino, cuja imagem terá ficado retida no último olhar daquele cadáver, aparentemente vazio e distante.
03 de Novembro de 2008