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segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Documento dos Nove


Documento dos Nove
(7-VIII-1975)



Camarada:
O documento anexo, dirigido a S. Ex.ª o Senhor Presidente da República e entregue para conhecimento ao Senhor Comandante do COPCON, dado o seu carácter de urgência e a dificuldade de o discutir com os camaradas dispersos por todo o País, para averiguar das sua eventual adesão ao seu conteúdo, foi assinado apenas por aqueles que o elaboraram.
Sugere-se assim que todos os militares que concordem com o seu conteúdo o subscrevam igualmente, remetendo pessoal ou colectivamente, conhecimento desse facto a S. Ex.ª o Senhor presidente da República.
Os camaradas que subscreveram o ORIGINAL, membros do CONSELHO DA REVOLUÇÃO, foram:
Cap. Vasco Lourenço
Maj. Vítor Alves
Maj. Canto e Castro
Brig. Franco Charais
Cap. De Fragata Vítor Crespo
Brig. Pezarat Correia
Maj. Costa Neves
Cap Sousa e Castro
Maj. Melo Antunes

NOTAS:
1. Considera-se muito importante que a recolha de assinaturas seja feita com a maior rapidez por forma a que os documentos assinados provenientes das unidades sejam presentes a S. Ex.ª o Senhor presidente da República no mais curto prazo possível (entre 2 a 4 dias)
2. As assinaturas deverão, em caso de ilegibilidade, ser acompanhadas, à margem, de identificação do camarada.
3. Após recolha das assinaturas os exemplares assinados deverão ser entregues por portador no seguinte endereço:
CONSELHO DA REVOLUÇÃO
(edifício do antigo Ministério do Ultramar)
Av. Ilha da madeira – Restelo
Piso 6 – Sala 647



Senhor Presidente da Republica
Excelência,

1. Os recentes desenvolvimentos da situação política em Portugal, incluindo o que tem vindo a processar-se no interior das Forças Armadas, decidiram um grupo de oficiais a tomar um a posição crítica relativamente aos acontecimentos mais em foco no desenrolar dosa diversos episódios que têm pautado a conturbada vida política dos portugueses nas últimas semanas.
Parece a esses oficiais que se chegou a um momento de se clarificarem posições políticas e ideológicas, terminando com ambiguidades que foram semeadas e progressivamente e alimentadas por todos aqueles que, dentro e fora das Forças Armadas, estavam interessados no descrédito de uns tantos para melhor poderem fazer valer e impor as suas ideias.
Recusam, à partida, os oficiais que por esta forma se manifestam o epíteto de «divisionistas» com que têm tentado denegri-los, tendo-se chegado ao escandaloso despudor de se sugerir a sua expulsão das FA. Eles não abdicam do seu direito de crítica, direito esse que, num tão grave momento da vida nacional, assume o carácter de dever patriótico.
2. O Movimento das Forças Armadas nasceu do espírito e do coração de um punhado de oficiais democratas, patriotas e antifascistas que decidiram por termo a uma longa noite fascista e iniciar com todo o povo português, uma nova caminhada de paz, progresso e democracia, na base de um Programa Político universalmente aceite e respeitado. Sabe-se como as grandes movimentações das massas populares abriram novas expectativas à revolução democrática iniciada em 25 de Abril de 1974 e como, a partir sobretudo das eleições gerais para a Assembleia Nacional Constituinte, a via para o socialismo passou a ter carácter irreversível.
O «Programa do Movimento das Forças Armadas» era o elemento teórico da Revolução democrática mas continha já o essencial das propostas políticas que apontavam parta um dado modelo de socialismo. Em virtude disso, o pensamento de esquerda subjacente à elaboração do «Programa» não foi nada ferido pelos chamados «avanços do processo revolucionário», onde e quando esses «avanços» corresponderam efectivamente à destruição das estruturas políticas, económicas e sociais do antigo regime, e foram na prática substituídas por novas estruturas operativas e actuantes, base de uma nova organização político-social de raiz socialista.
Infelizmente, porém, quase nunca se verificaram transformações deste tipo.
Assistiu-se, sim, ao desmantelamento de grandes grupos financeiros e monopolistas; mas, paralelamente, e à medida que as nacionalizações se sucediam (a um ritmo impossível de absorver, por muito dinâmico que fosse o processo e por maior que fosse o grau de adesão do povo, sem grave risco de ruptura do tecido social e cultural preexistente – é o que se verifica actualmente), foi-se assistindo à desagregação muito rápida das formas de organização social e económica que serviam de suporte a largas camadas da pequena e média burguesia, sem que fossem criadas novas estruturas capazes de assegurarem a gestão das unidades produtivas e dos circuitos económicos e de manterem o mínimo indispensável de normalidade nas relações entre todos os portugueses.
Entretanto, e paralelamente, verifica-se a progressiva decomposição das estruturas do Estado. Formas selvagens e anarquizantes de exercício do poder foram-se instalando um pouco por toda a parte (até no interior das FA) retirando proveito dessa desordem as organizações ou formações partidárias mais experientes e ávidas do controlo dos vários centros de poder. O MFA, que inicialmente se havia afirmado como suprapartidário, viu-se cada vez mais enleado nas manipulações politiqueiras de partidos e organizações de massas, acabando por se ver comprometido com determinada projecto político que não correspondia nem à sua vocação inicial nem ao papel que dele esperava a maioria da população do país: o de guia e condutor dum processo de transformação profunda da sociedade portuguesa, com um claro projecto político de transição para o socialismo, independente dos partidos, embora sem dispensa do seu concurso e com a mais ampla base social de apoio possível.
3. O País encontra-se profundamente abalado, defraudado relativamente às grandes esperanças que viu nascer com o MFA. Aproxima-se o momento mais agudo de uma crise económica gravíssima, cujas consequências não deixarão de se fazer sentir ao nível de uma ruptura, já iminente, entre o MFA e maioria do povo português. Alarga-se, dia a dia, o fosso aberto entre um grupo social extremamente minoritário (parte do proletariado da zina de Lisboa e parte do proletariado alentejano), portador de um certo projecto revolucionário, e praticamente o resto do País, que reage violentamente às mudanças que uma certa «vanguarda revolucionária» pretende impor, sem atender à complexa realidade histórica, social e cultural do povo português.
Finalmente, a fase mais aguda da descolonização (Angola) chega, sem que se tenha tomado em consideração que não era possível «descolonizar», garantindo uma efectiva transição pacífica para uma verdadeira independência, sem uma sólida coesão interna do poder político, e sem, sobretudo, se ter deixado de considerar que a «descolonização» devia continuar a ser, até se completar, o principal objectivo nacional. Vemo-nos agora a braços com um problema em Angola que excederá provavelmente a nossa capacidade de resposta, gerando-se um conflito de proporções nacionais que poderá, a curto prazo, ter catastróficas consequências para Portugal e para Angola. O futuro de uma autêntica Revolução em Portugal está, em todo o caso, comprometido, em função do curso dos acontecimentos em Angola, à qual nos ligam responsabilidades históricas inegáveis para além das responsabilidades sociais e humanas imediatas para com os portugueses que por lá trabalham e vivem.
4. Todo este grave conjunto de aspectos da vida nacional tem vindo sistematicamente a ser escamoteados e, mais do que isso, profundamente adulterados, por larga parte dos meios de comunicação social, através de um rígido controlo partidário que sobre eles se exerce – particularmente dos nacionalizados – assistindo-se hoje ao degradante e vergonhoso espectáculo de corrida de uma boa parte da população aos noticiários de emissoras estrangeiras sobre o nosso país.
Coimo se isso não fosse já bastante, foi-se ao cúmulo de preparar um projecto de diploma que, ao instituir uma «comissão de análise» (e porque não uma «comissão de censura?» servirá de ferro de lança apontada aos últimos e resistentes baluartes da imprensa livre neste país.
5. Não se pretende esgotar, neste documento, a crítica à acção do regime instaurado após o 25 de Abril ou, em especial, das instituições após o 28 de Setembro de 1974. Recentemente, muitas contribuições críticas têm vindo a público que, no essencial, esclarecem sobre as debilidades fundamentais do actual regime.
Importa ao grupo de oficiais que entendeu chegar o momento de tomar posição, definir-se tão claramente quanto possível, perante o povo português e relativamente às várias instâncias de poder político e, em particular, ao MFA. E assim, entendem deixar expresso o seguinte:
¬ Recusam o modelo de sociedade socialista do tipo europeu-oriental a que fatalmente seremos conduzidos por uma direcção política que crê, obstinadamente, que uma «vanguarda» assente numa base social muito estreita fará a revolução em nome de todo o povo, e que tem, na prática, tolerado todas as infiltrações dessa «vanguarda» nos centros de poder político e nas estruturas militares.
O dirigismo burocrático típico de regimes totalitários é frontalmente negado por aqueles que lutaram no passado contra o fascismo e coerentemente se colocaram agora numa perspectiva de luta contra novas formas de totalitarismo.
¬ Recusam o modelo de sociedade social-democrata em vigor na Europa Ocidental, porque acreditam que os grandes problemas da sociedade portuguesa não podem ser superados pela reprodução no nosso país dos esquemas clássicos do capitalismo avançado.
Seria um erro trágico, no momento em que tudo leva a crer que se avizinha uma crise geral e global do capitalismo, que se tentasse, mesmo à custa de benefícios reais imediatos m as manifestamente ilusórios, a repetição das experiências sociais-democratas.
¬ Lutam por um projecto político de esquerda, onde a construção de uma sociedade socialista ¬ isto é, uma sociedade sem classes, onde tenha sido posto fim à exploração do homem pelo homem ¬ se realize aos ritmos adequados à realidade social concreta portuguesa, por forma a que a transição se realize gradualmente, sem convulsões e pacificamente.
Este objectivo só será atingido se, à teoria leninista da «vanguarda revolucionária», impondo os seus dogmas políticos de forma sectária e violenta, se opuser a estratégia alternativa da formação dum amplo e sólido bloco social de apoio a um projecto nacional de transição para o socialismo.
Este modelo de socialismo é inseparável da democracia política. Deve ser construído, pois, em pluralismo político, com os partidos capazes de aderir a este projecto nacional. Este modelo de socialismo é inseparável, ainda, das liberdades, direitos e garantias fundamentais. Não se nega que possam sofrer transformação do seu conteúdo à medida do avanço do processo histórico. No entanto, uma concepção revolucionária de socialismo, para um país europeu como Portugal, inserido no contexto geopolítico e estratégico em que se encontra, e com o passado histórico e cultural que é o seu, não desvincula o problema fulcral da liberdade humana do da construção do socialismo.
¬ Reclamam e lutam por uma autêntica independência nacional (tanto política como económica) o que significa a aplicação coerente de uma política externa adequada às nossas realidades históricas culturais e geopolíticas, o que implica:
¬ abertura de relações em todos os países do mundo, na base da igualdade, respeito mútuo e não ingerência nos assuntos internos de cada país, tendo em conta a necessidade de independência relativamente às grandes potências:
¬ manutenção das nossas relações com a Europa, reforçando e aprofundando as relações com certos espaços económicos (CEE, EFTA);
¬ franca abertura em relação ao Terceiro Mundo (com particular relevo para as nossas antigas colónias) e países árabes;
¬ aprofundamento das relações com os países do leste europeu.
¬ Lutam por recuperar a imagem primitiva do MFA, no sentido de que o MFA só teve aceitação universal enquanto aparelho autónomo da produção política e ideológica.
Assim se explica o consenso que se formou em torno do seu Programa. Considera-se indispensável, pois, para a resolução correcta da crise gravíssima que o país atravessa, que o MFA se afirme suprapartidário como desenvolva uma prática política realmente isenta de toda e qualquer influência dos partidos. Só assim reunirá condições para recuperar a sua credibilidade e cumprir a sua vocação histórica de árbitro respeitado e motor do processo revolucionário.
Só assim, também, poderá esperar que um grande bloco social de apoio, englobando proletariado urbano e rural, pequena burguesia e largos estratos da média burguesia (incluindo técnicos e intelectuais progressistas) possa ainda formar-se, criando a base de sustentação indispensável à realização prática das grandes transformações por que deve passar a sociedade portuguesa.
¬ Recusam a instituição de uma política que assentem em medidas e práticas demagógicas, qualquer que seja o seu carácter, que mais não são do que a prática da real incapacidade de equacionar os grandes problemas da sociedade portuguesa e de lhes encontrar soluções adequadas e justas, termos de uma política de equilíbrio e verdade, única forma legítima de obter uma ampla mobilização das bases sociais de apoio.
¬ Entendem que a tão falada questão da «crise de autoridade» reflecte a questão mais geral do «poder político». Onde se situa o poder político? Quem é o seu detentor? Como faz uso dele?
Julga-se que a questão do poder não é tanto o problema do poder ao nível das instâncias governativas como ao nível do MFA. Isto é: a questão do poder é a questão do poder no interior do MFA.
A clarificação deste problema é tarefa prioritária. Sem isso, não é possível atacar o fundo do problema da organização do Estado, evitando a sua completa ruína. As divergências surgidas no seio do MFA são o reflexo de projectos ideológicos distintos. Projectos incompatíveis entre si, pois não é possível conciliar uma concepção totalitária de organização da sociedade com uma concepção democrática e progressista ou ainda com vagas concepções populistas de feição anarquizante.
É necessário denunciar vigorosamente o espírito fascista subjacente ao projecto que, dizendo-se socialista, acabará na prática numa ditadura burocrática dirigida contra a massa uniforme e inerte dos cidadãos dum país.
É necessário repelir energicamente o anarquismo e o populismo que conduzem inevitavelmente à catastrófica dissolução do Estado, numa fase de desenvolvimento da sociedade em que, sem Estado, nenhum projecto político é viável.
¬ A resolução da crise do poder no interior do MFA ¬ e, portanto, da questão do poder ao nível do Estado ¬ não terá, porém, saída, enquanto tratada apenas ao nível dos diferendos ideológicos. É indispensável, na prática, encontrar solução adequada para o problema da dispersão dos «centros de poder». Sem o mínimo de «unidade de comando» a direcção política revelar-se-á cada vez mais fluida, vagando perdida no mar encapelado de decisões arbitrárias duma 5.ª Divisão do EMGFA, duma Assembleia do MFA, de Assembleias de militares «ad-hoc» reunidas imprevista e misteriosamente, de Gabinetes de Dinamização, do Conselho da Revolução, do COPCON, de Sindicatos, etç. Ao Governo, nestas condições, que espaço de manobra lhe resta e com que autoridade actua? Nenhuns planos poderão ser coerentemente concebidos e aplicados sem um Governo que, por um lado, não deixa margem para dúvidas quanto à sua capacidade de execução do projecto político global definido pelo MFA e que, por outro, seja revestido da autoridade necessária para se fazer obedecer.
6. Em cada dia, a cada hora que passa, multiplicam-se os sinais evidentes duma agitação social que tende perigosamente a alastrar, submergindo o país numa onda de violência incontrolável.
Acumulam-se factores que geram a promoção duma ampla base social de apoio ao regresso do fascismo. E é ridículo dizer-se, como certas formações políticas e certos órgãos de informação, que são «manobras da reacção». O descontentamento. O mal-estar, a angústia, são reais e por demais evidentes e têm a sua causa profunda em erros de direcção política acumulada ao longo dos últimos meses e em desvios graves de orientação no interior do próprio MFA.
Que fazer?
Encontramo-nos em mais uma encruzilhada da História e é ao MFA, uma vez mais, que compete assumir o peso maior das responsabilidades para com o povo português.
É imperioso escolher conscientemente a via para o socialismo, sem violar a vontade da grande maioria dos portugueses conquistando hesitantes ou descontentes pela persuasão e o exemplo. Terá de competir ao MFA, em independência dos partidos políticos, mas tendo em atenção o papel que estes podem e devem representar, definir um projecto político de transição para o socialismo.
É necessário reconquistar a confiança dos portugueses, acabando os apelos ao ódio e as incitações à violência e ao ressentimento. Trata-se de construir uma sociedade de tolerância e de paz e não uma sociedade sujeita a novos mecanismos de opressão e exploração, o que não poderá ser realizado com a actual equipe dirigente, ainda que parcialmente renovada, dada a sua falta de credibilidade e manifesta incapacidade governativa.
É preciso, finalmente, conduzir o País, com justiça e equidade, e segundo regras firmes e estáveis, em direcção ao socialismo, à democracia e à paz.

Dinis de Almeida, Ascensão…, vol. II, pp. 456 - 460