Não era nenhum Adónis mas tinha um cortiço robusto e escarmentado nas lides da vida. Era respeitado e respeitador, conhecido em todo o Alto Minho e até por terras de Barroso aonde se deslocava de tempos a tempos em negócios ou apenas para observar o que de melhor por lá se criava.
As suas pernas atarracadas e fortes, ligeiramente arqueadas, já tinham acumulado centenas, milhares de quilómetros por caminhos e veredas, por vales e montanhas, sob as mais rigorosas inclemências do tempo, quer fizesse sol ou chuva, quer estivesse calor ou frio.
Frequentava todas as feiras das redondezas e sabia avaliar como ninguém as qualidades intrínsecas de qualquer animal doméstico, especialmente gado bovino. O seu olhar arguto identificava melhor que ninguém as potencialidades reprodutoras de um jovem novilho de raça barrosã, que era a melhor para cobrição. O focinho curto, a testa larga e bem armada com grossos e afiados cornos, cachaço proeminente, espessa e farta barbela, peito fundo, ancho e saliente, a espinha recta, forte de quadris, cascos pequenos e rijos, boa umbigueira e graúdos testículos – todos esses atributos eram objecto de uma análise visual muito cuidada, complementada com uma acção inspectiva designada alobeitar(1) porque do bom investimento feito num reprodutor dependiam muitos dos benefícios alcançados ao longo dos anos.
Naquele dia, quando o sol despontou no horizonte, já o Pinto seguia célere e incansável pela estrada de Cabreiro em direcção à Vila dos Arcos de Valdevez. Era dia de feira, um evento quinzenal dos mais importantes da região, onde se reuniam os melhores espécimes de gado além de uma enorme diversidade de artigos de vestuário e do lar, alfaias agrícolas e até mezinhas e unguentos que curavam todas as maleitas.
Mas a paixão do Pinto era o negócio do gado e era nesse sector que deambulava, descontraidamente, observando aqui um vitelo, ali um poldro, acolá um belo garrano, mais além uma conversa animada em torno de uma parelha de esplêndidas vacas piscas.
Por entre os proprietários que ali expunham a sua criação para venda e os curiosos que, como o Pinto, apenas observavam, gravitavam os inconfundíveis negociantes de gado, em regra indivíduos de meia idade, vara de lodo ou junco na mão, chapéu de castor na cabeça e trajando um colete clássico de onde sobressaía o volumoso maço de notas que enchia a gasta carteira de cabedal. Eram autênticas aves de rapina, espécie de correctores de bolsa da actualidade, que determinavam o valor da mercadoria e, pressentindo alguma necessidade de dinheiro mais premente da parte dos vendedores ofereciam pelas suas reses uma importância muito inferior ao valor real.
O negócio iniciava-se quase sempre por uma abordagem aparentemente desinteressada indagando quanto queriam pelo animal. Se o desinteresse fosse genuíno o “negociante” afastava-se. Porém, se o negócio interessava fazia uma oferta, quase sempre pela metade. Discutia-se, havia algumas cedências de parte a parte, até que intervinha um terceiro e dividia a diferença ao meio. Não, não pode ser, é muito, dizia um, é pouco, contrapunha o outro. Até que o intermediário convencido que era possível chegar a um entendimento pegava uma nota das muitas que o negociante transportava na velha carteira e entregava-a ao vendedor. Era o sinal, o resto seria pago na feira seguinte. Mas o necessitado lavrador hesitava, tentava fazer subir a oferta. Contudo, percebendo que tal já não seria possível, agarrava a nota – por consideração ao intermediário – e o contrato ficava selado.
Tão absorto andava o Pinto nas suas lides que nem deu pelo tempo passar. O dia não lhe foi propício para negócios mas recolhera muita informação que lhe seria útil posteriormente e, como o sol já se aproximava do ocaso, era hora de regressar, que ainda tinha muito caminho para percorrer.
Ao passar em Vilela escurecia, em Cabreiro era noite fechada. Para piorar as coisas o tempo mudou bruscamente e grossas e negras nuvens impediam que chegasse à terra a mínima claridade. Estava uma noite escura como breu. Nada que atemorizasse o Pinto. Já tinha passado por situações piores e nunca o impediam de prosseguir. Medo era coisa que nunca sentira.
Passou em Portela de Alvite sem ver vivalma e ataca a serra em direcção a Santa Marinha sem desfalecimento. Aqui viu uma luz acesa em casa de um conhecido e bateu à porta. Um ligeiro mata-bicho deu-lhe forças para continuar. O amigo forneceu-lhe um facho de palha e lume para em caso de necessidade iluminar o caminho ou afastar alguma fera. Não seria necessário mas à cautela era melhor estar prevenido.
Continuou, incansável. Atravessou a ribeira e iniciou a subida pela encosta de Travassô em direcção a Modelos. De repente as coisas complicaram-se, perdeu-se momentaneamente no caminho, voltou atrás, não descortinava o trilho tão conhecido. Atiçou o facho mas uma inesperada rajada de vento deixou-o novamente na mais profunda escuridão. Subitamente uma constelação de luzes acendeu-se à sua volta. Teve então início uma frenética dança com as luzes a rodopiar em torno do caminhante de forma vertiginosa. Tentou, debalde, divisar o que estava a suceder e que figuras misteriosas faziam girar aqueles estranhos luzeiros. Desesperado fez revolutear o cajado que sempre o acompanhava em torno de si mas esse gesto apenas fez que perdesse o contacto com o chão. No meio do torvelinho sentiu-se elevar pelos ares e perdeu-se no espaço.
Um raio de sol iluminou-lhe o rosto. Sentiu a claridade sob as pálpebras e abriu os olhos lentamente. Estava paralisado e transido de frio. Ouvia o rumorejar das águas de um regato próximo mas não via qualquer ribeiro. Olhou à volta e mal lobrigou que pela frente existia somente o vazio de um precipício o qual terminava apenas no invisível curso de água, muitos metros abaixo. Com precaução sentou-se no exíguo patamar da falésia onde se encontrava. Não tinha ferimentos nem lhe faltava nenhum dos seus haveres. Até o cajado e o facho se encontravam intactos junto de si. Lembrava-se vagamente do bruxuleante bailado durante a noite mas não sabia se tinha sido real, ou se fora um sonho, ou meramente fruto da imaginação.
Olhou a paisagem em frente e reconheceu a corga do Vale d’Açoreira, a encosta do Carvalhinho e as coutadas do Coto do Moinho, tudo fronteiro a Cavenca, o lugar de onde partira para a feira mas em sentido oposto. Como teria ido ali parar? E a um local onde ninguém em seu perfeito juízo ousava aceder? Não, aquilo que viu e sentiu na noite anterior não foi sonho nem fruto da sua imaginação, só por artes mágicas é que poderia ter ido acabar ali a caminhada. Se acreditasse em bruxas diria que aquilo fora mesmo bruxedo mas isso estava fora de questão. Sempre se revelara contra essa antiga e inquestionável crença de outras pessoas que afiançavam cegamente a sua existência. Nem mesmo o facto de uma vizinha ter fama de bruxa o fazia mudar de ideia.
A custo conseguiu escalar o rochedo até atingir chão seguro. Já via o casario da aldeia que despertava para mais um dia de labuta. Foi para casa. A única pessoa que encontrou até lá foi a vizinha bruxa que, com um sorriso enigmático e trocista lhe atirou: - Anda que tiveste sorte! Era para darem cabo de ti…hi…hi…hi…
Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
A Dança das Bruxas
Coimbra, 15 de Novembro de 2008
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Conto,
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