Ninguém case com mulher velha. As velhas, ainda que pareçam santas, são o demónio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher, mais velha do que ele trinta anos.
Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas não provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um pelém. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feirão, porque a palavra comerciante é fina de mais para se aplicar ao modo de vida do Frederico. Feirão, sim porque o negócio do Frederico era vender na feira porcos de criação. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negócio com o dote e dar-lhe respeito à casa com os cabelos brancos.
Embora doente, o Frederico era activo e até ambicioso. Madrugava como um pássaro e só adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabeça as contas do negócio.
Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. Não tinha cor, mas, de ano para ano, ia-se tornando menos seco e mais robusto. Quando casou, já não era o rapazinho débil que a primeira cava derreara. As moças, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal empregado!
Não há dúvida que o casório do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedaço de chão da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes ao prédio e aquele gordo torrão ali ao pé seriam boa cama e refeitório farto para o seu gado. Antes de casar com a proprietária, enamorou-se da propriedade.
Que, valha a verdade, a dona de tão bela regalia – casa e quintal – tinha também seu préstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraçava de toda a sua lida, que não era pequena. Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos, ia à lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo como ninguém. O vivo é o porco ou porcos que habitam uma corte. É a biologia sagrada de uma vivenda. O vivo! Significa o ser vivo por excelência. Ora, em sete freguesias pegadas, ninguém cuidava melhor dos entes que grunhem e não vêem o céu do que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criações a olhos fechados.
Da admiração da obra à admiração da autora mediou um passo. Mulher que tão asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva! A senhora Aninhas - chamava-se Aninhas - era mulher perfeita.
Destes cumprimentos, destas exclamações sinceras, até ao casamento foi outro passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto à categoria de empório comercial do Frederico. A loja, povoada de buliçosos bácoros muito limpos, sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma creche de criancinhas ruças. No meio deles, com uma vide na mão, a senhora Aninhas figurava como ama sem touca, mas com uma habilidade, um dedo para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou três monossílabos e umas cócegas feitas com a vide no serro dos inocentes – assim os comandava.
Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da casa – hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os vizinhos, em suas avaliações mentais um pouco invejosas, para cima de cem contos. Como o vissem assim, tão aumentado de teres, começaram a chamar-lhe Tio Frederico e até senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.
É raro que o homem sofra mais do que uma paixão. A paixão do Frederico era o negócio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que é consideração, acima do cavalo que o levava à feira. Extasiar-se, só se extasiava diante dos bácoros, que representavam dinheiro. Chamava-os – bicá, bicá – com ternura utilitária.
A mulher não era assim. Vivia para o marido. Solteira até aos cinquenta anos, delirou-se quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lágrimas de júbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido. Por amor dele, tornou-se avarenta – sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como filho e como esposo. Sabendo-o de compleição delicada, alimentava-o a preceito com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a bebê-los assim, que era, na opinião dela, como faziam melhor. À noite, como o sentisse exausto das jornadas, não se punha a maçá-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a contemplá-lo como as mães contemplam os filhos adormecidos no colo.
O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como consorte, mas não lhe retribuía o dízimo do carinho. O fito da sua vida era o negócio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bácoros, eram instrumentos do seu ganha-pão. Estava satisfeito, não arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas, ainda que velha, era o seu braço direito na luta que travara contra a doença e contra a pobreza. Era sua sócia. Prezava-a como tal. No dia em que a senhora Aninhas percebeu que não passava de sócia do marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da mãe - teve saudades da vida de solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a não cegasse o orgulho de ter casado com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o nó dado na igreja.
Entretido com o negócio, o Frederico não pensava na mulher. Quando ia pelos caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, à cata de porcos finos para criação, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da mulher lhe acudia. Era um feirão. Movia-o a ânsia de feirar.
Hoje uma vinha, amanhã um campo, depois uma tojeira ou um mata-reco, a pouco e pouco o Frederico ia juntando as peças de um casal formoso. Parecia-lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a força física. O desaire sofrido na primeira cava ia vingando.
Toda a energia do Frederico se aguçava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de soslaio a sua graça quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, não conivente com o intuito das moças.
A senhora Aninhas não acreditava na inocência do Frederico. Não compreendia que rapaz tão novo jejuasse tanto. Ela não acreditava. Sentia-se preterida por outra ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginárias. Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os com minúcia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia encontrou um pêlo preto aderente ao colete de pelúcio do marido. Pegou no pêlo, aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:
- Está aqui, ladrão! Hei-de pô-lo num relicário até a dona aparecer. Quem ma dera pilhar! Este cabelo é de cigana. Gostas de ciganas, ham?
- Ó mulher, isso não é um cabelo. É uma clina do nosso Mulato, explicou, com vontade de rir, o Frederico.
- Olha, mulher, continuou. O Mulato está na manjadoira. Chega-te a ele e verás que lhe adita a clina.
A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e soprou o pêlo.
Assim ela varresse para sempre os zelos. Que não varria. Debalde defumava a casa. Debalde mandava às bruxas a camisa do homem para análise. As bruxas davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitério, sal derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria à risca a receita das bruxas. Debalde! Debalde! O seu coração não se aquietava.
Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico. Embora... Foi contraproducente esse dispêndio. Ele, que a princípio lhe tolerava os ciúmes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa noite com meia dúzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Daí por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do Mulato, por cima da manjadoira.
A casa do Frederico ressentia-se desta desavença. Casa que fora limpa antes de a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa para ser montureira. Na corte, os bácoros, deitados em más camas, emagreciam antes de ser vendidos, à míngua de refeições pontuais. Cortava o coração ouvi-los grunhir de fome.
O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negócio e deixou-se seduzir pelas moças que rondavam as feiras com o corpo metido em seda vegetal. Emagreceu como os bácoros. Perdeu o apetite.
A senhora Aninhas chorava do coração a magreza do marido. De noite, não dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saía da cavalariça ou se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados em Lamego, na Régua e em Vila Real, durante as feiras. Não tinha pacto com vizinha.
Em vão a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a boca na botija, como ela dizia. Uma manhã, porém, da janela do quarto, viu-o cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo António como de costume. Alongou os olhos no rasto do marido. Pôs-se a chorar. Depois olhou indiferente para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam também à feira. Deixá-las ir... Lá marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro da terra. Amigo de passear, ia à vila por cinco réis de nada. Às vezes ia comprar um novelo de fio. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. Não tinha quem lho comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrás do sapateiro, caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma mantilha rota. Era a Bártola alcoviteira. Ao lado da Bártola, a olhar para o chão, ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? Não a enojava a sombra de uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalariça do Mulato, coseu-se com a companheira e lá seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito da senhora Aninhas, deu-lhe salto o coração. Tate! A sonsa da Candidinha falava com o seu homem.
Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa à janela todo o santo dia. Ali ficou até o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com um rolo de sola debaixo do braço, e, na cauda do cortejo que regressava à aldeia, a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Bártola. Como de manhã, a Candidinha relanceou os olhos à loja do Mulato.
Presa à janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.
Rompia a manhã quando saiu da janela. Tocou o sino às ave-marias, rezou pelas bentas almas. Deitou água num alguidar e lavou a cara. Depois saiu do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto tão subtil, que nem o marido nem os porcos deram fé.
Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dúzia de passos e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem boas tardes. Levantou a mão direita, que levava escondida debaixo do avental. À luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mão da senhora Aninhas. Foi um relâmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, ficou branca como uma açucena.
Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram à presença do administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ninguém lhe ouviu um lamento, ninguém lhe viu uma lágrima. Encarava as pessoas com expressão alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendão de vitória.
A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentença, deu uma grande risada. Recolheu à cadeia, entre duas praças da Guarda, com a cabeleira branca esvoaçante como um pendão de vitória.
Com a justiça, o homem arruinou a casa, já desfalcada antes do crime por amor dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi à cadeia visitar a mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o às grades com palavras meigas. Ele aproximou-se confiado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.
Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a pé, que vendera o cavalo, se queixou aos amigos de tanta desgraça junta, consolaram-no os amigos, dizendo:
- Olha, Frederico. As velhas são o Diabo!
João de Araújo Correia,
(Da Terra Ingrata, 1946)
http://virtual.inesc.pt/~jaj/crestomatia/47.html
Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.
domingo, 2 de novembro de 2008
As Velhas são o Diabo
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Conto,
João Araújo Correia