A alteração da designação em processo penal do sujeito passivo, isto é, da parte contra quem decorre a acção penal, data de 1 de Janeiro de 1988, dia em que a entrou em vigor a respectiva lei do processo a qual introduziu profundas alterações ao nível da instrução e considerou, sobretudo, a pessoalidade da defesa, dando mais valor a esta do que à celeridade do processo.
E mesmo tendo decorrido mais de duas décadas sobre a actual designação e milhares de pessoas terem já assumido essa qualidade perante as autoridades judiciárias ou órgãos de polícia criminal, a verdade é que o termo arguido ainda é de difícil compreensão (o exemplo mais flagrante é o célebre “caso Maddie”) o que não sucedia com o clássico réu que qualquer pessoa identificava de imediato com algo ou alguém com culpa. Muitas vezes ouvi as pessoas da minha terra dizer, dirigindo-se aos mais pequenos quando faziam alguma asneira: estás com cara de réu!
Pois, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, entre 2002 e 2006, o número de arguidos em processos crime na fase de julgamento em Tribunais de 1.ª Instância situou-se entre os 90.000 e os 110.000, o que não deixa de ser muito relevante.
Período de referência dos dados | Arguidos em processos crime na fase de julgamento findos nos tribunais judiciais de 1ª instância |
2006 | 107 267 |
2005 | 102 942 |
2004 | 104 969 |
2003 | 106 018 |
2002 | 97 595 |
A constituição de arguido obedece a requisitos legais definidos no Código de Processo Penal, nomeadamente:
Art. 57.º
1. A ssume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.
2. A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.
Art. 58.º
Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado.
Art. 59.º
Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior.
A pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.
Vem isto tudo a propósito de um episódio que levou à minha constituição como arguido e sujeição aos deveres inerentes, qualidade que supostamente ainda se mantém dado que formalmente ainda ninguém me comunicou o resultado do processo.
Estava eu tranquilamente no meu local de trabalho, mesmo sendo um sábado, dia em que não é muito usual trabalhar-se, quando dois indivíduos irrompem no Posto a pedir a intervenção da Guarda por causa de um negócio de castanhas mal concretizado e que envolvia cerca de seis mil contos, uma antiquada forma de denominar os milhares de escudos.
Os homens, dois irmãos, um comerciante e proprietário de uma residencial, o outro guarda-fiscal, vinham desde Carrazedo de Montenegro na peugada de um indivíduo das imediações do Porto a quem o primeiro vendera fiado o referido produto, que abunda naquela região e da melhor qualidade, e que foi revendendo pelo percurso de regresso à Invicta a um preço inferior ao da aquisição. E ao saberem disso logo intuíram que o mais certo era o tal indivíduo não planear pagar o que devia.
Mas souberam também que nesse dia iria a Presandães, nos subúrbios de Alijó, receber o valor de uma parte das castanhas que ali tinha transaccionado com um comerciante local e daí o pedido de auxílio para resolverem o problema que tinham em mãos.
Nunca foi regateado apoio a quem dele precisasse, não seria também daquela vez que a regra seria quebrada. Só lhes pedi que estivessem atentos e quando o forasteiro aparecesse que avisassem.
Era perto do meio-dia quando deram o aviso. Uma patrulha deslocou-se ao referido lugar com os dois irmãos e ordenou ao forasteiro que os acompanhasse ao Posto para esclarecer o negócio, o que ele acatou sem qualquer oposição, até porque ao ver a disposição dos dois irmãos terá achado que seria muito mais seguro ficar junto dos guardas.
O homem sentou-se à minha frente, identificou-se convenientemente e respondeu a todas as questões que lhe coloquei com muita segurança e clareza, frisando que nunca deixaria de honrar os compromissos assumidos e que o seu problema era apenas de disponibilidade imediata para pagar o que devia. E dado não ter consigo cheques nem se encontrar aberta qualquer dependência bancária onde pudesse obter um desses papéis, sugeriu que assinaria de bom grado uma letra de câmbio no valor da importância devida acrescida dos respectivos impostos…
Perante aqueles argumentos entendi que a minha intervenção devia ficar por ali, forneci os elementos de identificação aos dois irmãos e informei-os de que nada mais poderia fazer. A partir dali competia-lhes a eles entenderem-se e, por conseguinte, podiam ir embora. Contudo o forasteiro insistiu para que eles fossem adquirir o título de crédito que ele queria assiná-lo na minha presença como prova da sua boa fé, coisa de que eu nunca tinha duvidado. Não era o que esperavam os credores mas naquelas circunstâncias
não havia alternativa. E lá foram os dois irmãos à papelaria do Torcato comprar o documento pelo qual, só de imposto de selo, pagaram mais de sessenta contos.
Depois de tudo conferido e assinado pelos diversos intervenientes num clima de confiança recíproca, foram-se todos embora sem quaisquer ressentimentos e eu fiquei convencido que acabara de ajudar a resolver um problema bicudo a contento de todos.
Engano meu. Mal eu podia imaginar que tinha acabado de arranjar argumentos para ser constituído arguido por todos estes anos.
O comprador das castanhas era um daqueles indivíduos que olhamos para eles e algo nos diz estarmos perante um refinado patife. Baixote, “redondo”, é melhor de caracterizar se imaginarmos a cabeça em forma esférica em cima do tronco também esférico mas com um perímetro muito superior e duas grossas estacas com botas na extremidade inferior a segurar aquilo tudo… No meio da cara abolachada pontuavam dois olhitos pequenitos, traiçoeiros, mais parecidos com os de uma ratazana. Confesso que nunca lhe confiaria um alqueire de castanhas, muito menos um carregamento no valor de muitas centenas de contos.
Eu tinha quase a certeza que o problema entre os negociantes de castanhas não se iriam resolver de forma assim tão simples porque uma letra de câmbio obedece a regras bastante complexas porquanto, sendo certo que atribui ao sacado a obrigação de pagar ao tomador, o sacador permanece subsidiariamente responsável pelo pagamento da letra. Não sendo pago o título no seu vencimento, terá sempre de ser intentada uma acção judicial para o efeito. Mas a posse do documento sempre era o reconhecimento da dívida, o que até ali era sustentado apenas pela palavra de um e do outro.
O que eu não esperava era ver-me envolvido numa trama de contornos verdadeiramente kafkianos.
Algumas semanas depois fui convocado para comparecer no Tribunal. Ali sou confrontado com um inquérito instaurado com base numa denúncia apresentada pelo tipo com olhos de ratazana que, sem o mínimo pudor, desenvolveu uma história de fazer inveja ao próprio Franz K, onde pontificam acções como sequestro, coacção, detenção ilegal, etc.
Fui ouvido pelo funcionário que desempenhava funções na Delegação do Ministério Público e, como sempre, o meu profissionalismo e o sentimento de que quem não deve não teme, levou-me a descrever os factos tal como se passaram e fiquei descansado.
Mais uma vez me enganei. Decorridos alguns meses, uma nova chamada a Tribunal fez-me temer o pior. Desta vez era o Juiz de Instrução que estava com o processo. Constituiu-me formalmente arguido e não recordo se me aplicou o TIR (Termo de Identidade e Residência) porque as questões processuais nessa época não decorriam como agora. Se calhar tenho um TIR e não sei dele…
Relatei novamente os factos, manifestei a minha indignação e expliquei que toda a acção se enquadrava nas medidas de polícia legalmente estabelecidas e no quadro das competências conferidas por lei aos agentes das forças de segurança mas, pelo sim pelo não, dei conta do sucedido superiormente.
Penso que fui convincente porque nunca mais fui incomodado com esse caso.
Certo é que até agora desconheço qual foi o desfecho do processo e acerca da minha qualidade de arguido sempre se pode argumentar que, sendo também o particípio passado do verbo arguir, estará morto e enterrado…