Isto não é propriamente um blogue. É apenas um espaço para expandir trabalhos que, pela sua dimensão, tornem fastidiosa a sua leitura no Memórias.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Janeiro Geadeiro


É apenas um dos adágios populares que caracteriza o primeiro mês do ano. Já assim era há muitos anos, lá pelo primeiro lustro da década de sessenta, no Século passado.
Como referi aqui, o Posto Escolar Misto de Cavenca acolhia os jovens do lugar que integravam as quatro classes do ensino primário, hoje designado primeiro ciclo do ensino básico, e também os do lugar de Lijó, com excepção daqueles que “desertaram” para a Gave que ficava mais ou menos equidistante embora já se situasse no vizinho concelho de Melgaço.
Entre outros, integravam o grupo de estudantes de Lijó os meus primos, dois meninos mimados e cagarolas que quase todos os dias se queixavam à mãe das “maldades” que lhes faziam os “compagnons de route”.
De tal modo que, por acordo entre as famílias, passaram diariamente a ser “escoltados” por um dos primos de Cavenca, um pouco mais velhos e que, por isso, “impunham” respeito no grupo.
Para mim não era nenhum sacrifício, pelo contrário, estava sempre pronto para os acompanhar, principalmente porque em casa dos meus tios havia sempre boa comida e camas frescas, a contrastar com a invariável escassez alimentar e os velhos frangalhos que guarneciam os catres mal amanhados da casa dos meus pais.
Naquele dia, um ensolarado e lindo dia de Janeiro, foi a minha vez. Fora um dia magnífico, cheio de sol resplandecente e, no final das aulas, que se desdobravam pelos dois períodos do dia e terminavam pelas cinco horas da tarde, lá vou eu, ladeira abaixo, a velha e sebosa sacola com os objectos escolares a tiracolo, andrajoso e… descalço.
Distam os dois lugares cerca de dois quilómetros e, de Cavenca, situado a uma cota entre seiscentos e setecentos metros, a Lijó, cuja cota anda pelos trezentos e cinquenta metros, é quase sempre a descer. Escusado será dizer que em sentido contrário se dá o inverso.
Os caminhos eram bem conhecidos do grupo que ora se deslocava pelo monte do Teso, ora atalhava pelos Estieiros e tudo decorreu como habitualmente, isto é, fazer os deveres, desenvolver algumas brincadeiras e actividades domésticas tais como levar a velha Carriça a beber e regressar num galope desenfreado quais índios em plena pradaria, cear e… cama, que no outro dia há que recomeçar tudo.
No dia seguinte, manhã bem cedo, levantamo-nos e, como de costume, minha tia mandou-nos buscar água fresca à fonte da Aveleirinha para confeccionar a água de unto que nos iria sustentar até ao meio-dia. Foi nesse pequeno percurso que me apercebi da imensa camada de geada que se tinha formado no solo durante a noite, traiçoeiramente, silenciosamente, em segredo, branca, brilhante e… gelada!
Senti-a açoitar-me as encortiçadas solas dos pés descalços mas não me intimidei. Aqueles mesmos pés já tinham pisado gelo, neve, pedras, tojo e toda a casta de abrolhos, até aberto ouriços dos castanheiros para lhes arrancar as castanhas quando teimavam em ficar sérios e carrancudos sem largar o precioso fruto.
Depois do frugal pequeno-almoço pusemo-nos a caminho. Estava convencido que após uns metros de caminhada o sangue havia de fluir e aquecer as extremidades geladas mas não. Quanto mais pisava o solo gelado mais frio sentia nos pés. Quando começamos a subida dos Estieiros as dores já eram insuportáveis.
Ao lado do caminho a água no rego rumorejava feliz, indiferente ao meu sofrimento, e casualmente mergulhei um pé… Foi agradável, a água estava quente, mergulhei os dois, deixei que o gelo derretesse. Assim que senti o alívio das dores recomeçamos a caminhada. Os meus companheiros observavam consternados a minha titânica luta contra o frio mas nada podiam fazer. Por mais algumas vezes mergulhei os pés na água que mais depressa arrefeciam quando trilhava os cristais de gelo na terra dura redobrando as dores.
O percurso era agora um estreito carreiro, pelo meio do pinhal, e já não havia mais cursos de água por perto. Chorei com as mágoas dos pés dormentes e gelados mas continuei a caminhada. Vencemos a última calçada e chegamos finalmente à Escola, já o sol começava a aquecer o planeta e… os meus sofridos pés.
O sangue recomeçou então a circular por todas as extremidades e quando chegou a hora de entrar para as aulas já o pior tinha passado.
E que bem se estava agora na frigidíssima sala com os pés suspensos da confortável carteira…