O seu nome era António mas desde
pequeno toda a gente lhe chamava Antoninho, o menino Antoninho primeiro e o
senhor Antoninho mais tarde, quando passou a ocupar um lugar importante na
administração pública.
Nasceu numa aldeia do interior, no seio
de uma família conceituada, tanto pelo poder económico que lhe advinha de um
pequeno comércio local e pela posse de terras que lhe permitiam viver
desafogadamente, como pelo papel social que desempenhava através da distribuição
do correio e do telefone público, únicos na localidade.
Por isso o Antoninho teve a
oportunidade que outros da sua aldeia não tiveram de ir estudar para um colégio
interno lá para os lados de Braga onde concluiu o curso geral dos liceus um
pouco à custa da generosidade paternal. Embora revelasse “potencial” para ir
muito mais além, viu-se obrigado a interromper a sua brilhante carreira
académica devido ao falecimento de seu pai e ser preciso regressar à casa paterna
para ajudar a mãe no comércio e na lavoura.
Aqui se fez homem adulto e responsável.
Contraiu matrimónio com a prima Dorinda com quem teve dois filhos mas o dever
cívico imperava e foi chamado a cumprir as obrigações militares numa altura em
que todos eram poucos para defender o império que se estendia do Minho a Timor,
com a agravante de terem surgido focos de insurreição em algumas das mais
emblemáticas províncias ultramarinas.
Pelas suas habilitações académicas,
após a formação básica foi seleccionado para fazer o curso de sargentos
milicianos em Tavira e de seguida promovido a furriel de infantaria. Ali passou
a ser tratado por furriel Esteves. Mobilizado para uma comissão de serviço na
Guiné, formou batalhão em
Santa Margarida de onde partiu com destino àquela província
ultramarina. Ali se destacou por actos de bravura atestados pelos dois louvores
concedidos pelo seu comandante e uma condecoração com a cruz de guerra de quarta
classe obtida por feitos em campanha.
Regressou são e salvo passados três
longos anos mas entretanto muitas coisas mudaram no continente e na santa
terrinha e a família passava por algumas dificuldades económicas.
O comércio estava em declínio, a mão-de-obra
esvaiu-se por deslocação para o estrangeiro ou para as grandes cidades, a
agricultura definhava.
Ainda pensou emigrar, à semelhança da
maioria dos jovens daquele tempo, que assim não só se eximiam ao serviço
militar e à guerra mas também melhoravam as condições de vida com salários
muito acima dos que eram praticados por cá, mesmo em trabalhos desqualificados
embora muito penosos.
Mas o Antoninho, um nacionalista
convicto cujo amor à Pátria saiu reforçado com a sua participação activa nas
campanhas de África, entendeu que o seu lugar era cá, junto dos seus. Por isso,
socorreu-se dos conhecimentos que a família adquirira em tempos de maior
abastança e foi a Lisboa falar dos seus problemas com um velho amigo da casa,
um diplomata reformado, a quem fez obséquio do último presunto de produção
caseira que ainda se mantinha intacto no armário.
O velho amigo não o deixou voltar de
mãos a abanar. Telefonou para o cartório notarial da sede do concelho e falou
com o conservador, o dr. Teodósio de Sousa, de quem fora colega no seminário.
Havia uma vaga para um funcionário naqueles serviços e tinha a pessoa certa
para ocupar o lugar, um cidadão oriundo de boas famílias, bom filho, bom marido
e bom pai de família, um bravo combatente dos inimigos da Pátria e cumpridor
dos preceitos da santa igreja. Pedia-lhe, em nome da velha amizade, que tivesse
essa candidatura na melhor conta na hora de decidir.
Foi assim, sem necessidade de
outras provas de acesso a não ser a declaração solene de que nunca fora
comunista e repudiava firmemente essa ideologia, que o senhor Antoninho (assim
passou a ser reconhecido) integrou os quadros da função pública com a categoria
de ajudante de notariado no cartório notarial da vila, sede do concelho onde
residia.
Deste modo, o ex-estudante, e ex-comerciante,
e ex-agricultor e ex-militar transformou-se num zeloso e influente funcionário
público, sempre solícito e amável, não regateando esforços para “ajudar” os
mais necessitados, os mais amigos e mais chegados e complicando extremamente a
vida àqueles que exigiam tudo sem se apresentarem com coisa alguma para a
“troca”.
Por aquele cartório passaram vários
conservadores, outros funcionários iam e vinham, mas o senhor Antoninho, com as
suas mangas-de-alpaca, parecia agarrado de tal forma àquele espaço que até
parecia já fazer parte do mobiliário. Conhecia e reconhecia todos os cantos e
artefactos existentes nos gabinetes, era capaz de encontrar, de olhos vendados,
qualquer documento enfiado nas profundezas do arquivo, distinguia as pessoas
que demandavam os serviços e sabia quando devia ser solícito a atender ou
fazer-se muito ocupado para “castigar” um ou outro utente que nunca deixava
gorjeta.
Também nas contas se tornou um perito.
Sabia que as pessoas pouco ou nada ligavam aos papéis, pelo contrário, queriam
ver-se livres deles, e então adicionava parcelas virtuais às custas e
emolumentos legais, não demasiado grandes para não dar nas vistas mas o
suficiente para ajudar a governar a vida, que os ordenados da função pública
sempre foram escassos.
A integração na comunidade europeia
apanhou-o já com todas as diuturnidades vencidas e a transição para o novo
sistema retributivo da função pública favoreceu-o, abrindo-lhe perspectivas de
progressão na carreira sem grande esforço. Adquiriu um apartamento na vila,
embora continuasse a viver na aldeia porque aqui sempre havia um pedaço de
terra para a produção de vinho, batatas, hortaliças, fruta, criação de coelhos,
galinhas, o porquinho, com a sua licença, como diziam os mais velhos, o que era
uma fartura para a casa e lhe dava alguma folga salarial.
Se no plano profissional a coisas não
foram mal para o senhor Antoninho, no plano familiar também correram de feição.
A esposa, após o encerramento do estabelecimento comercial que já só dava
trabalho, dedicou-se de alma e coração à educação dos filhos e à administração
do lar. Os filhos, um rapaz e uma rapariga, cresceram num ambiente saudável e
formaram-se, ele em economia e ela em enfermagem e acabaram por ir viver para o
Porto e Viana, respectivamente, cidades onde se tinham formado e arranjado
emprego.
Também no plano conjugal não houve lugar
a sobressaltos apesar do casamento ter acontecido por algum interesse de parte
a parte e constituíam um casal muito tradicional onde imperava o respeito mútuo
e uma fidelidade a toda a prova, apesar de, a nível sexual, as coisas não
correrem da melhor forma. A Dorinda por vezes sentia-se algo marginalizada e
interpelava o marido acerca de ter outros amores, já que poucas vezes a
procurava, mas este jurava-lhe por todos os santos que nunca conhecera outra
mulher e que tudo não passava de cisma dela. E era verdade. O senhor Antoninho,
para quem o sexo apenas servira para procriar e pouco mais, nem sequer tinha
tempo de pensar nisso porque levantava-se cedo para ir para o emprego e quando
voltava ainda se repartia em mil e uma tarefas domésticas. Por isso, raro era o
dia em que não se deitava estoirado e pegava logo num sono profundo e
revigorante para desgosto da Dorinda que, resignada, enfiava um dedo na vagina
e tentava, debalde, dormir também.
Mas como dizia o poeta, “mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades”… Também para o pacato cidadão e distinto
funcionário muita coisa havia de mudar. Muito por causa da Gabriela, Gaby, para
os amigos e pessoas mais íntimas.