Mau grado a ironia quando me refiro ao Estado como pessoa de bem, a verdade é que não resulta da circulação das viaturas do Estado sem seguro menos garantias do que se a responsabilidade civil fosse transferida para uma Companhia de Seguros.
Mas o que mais impacto causa na notícia nem é a falta de seguro. É o facto dos condutores, que são obrigados a exercer funções nessas condições, terem de suportar os custos das indemnizações decorrentes dos acidentes em que são intervenientes. E então assiste-se a um verdadeiro chorrilho de disparates, até da parte de quem sabe perfeitamente que É MENTIRA, e ninguém tem a coragem de vir a público desmentir.
Pois eu, sem me pronunciar sobre se deve ou não ser transferida a responsabilidade civil para uma Companhia de Seguros, desafio quem quer que seja a demonstrar-me que, agindo sem culpa, isto é, ficando provado que o acidente ocorreu devido a causas meramente fortuitas, tenha sido obrigado a pagar os danos daí decorrentes.
Reportando-me a uma realidade que conheço bem, a Guarda Nacional Republicana, apraz-me esclarecer o seguinte:
A ocorrência de um acidente de viação dá sempre lugar a um processo sancionatório com vista a apurar as circunstâncias concretas em que o mesmo ocorreu e a responsabilidade disciplinar e/ou criminal do condutor e/ou do chefe de viatura. Paralelamente inicia-se um procedimento administrativo que determinará quais as pendências indemnizatórias a pagar ou receber de terceiros, a suportar SEMPRE pela Fazenda Nacional caso se conclua que é ao Estado que cabe assumir a responsabilidade total ou parcial pelos danos daí decorrentes, bem como promover a reparação da viatura do Estado. Se em função do conhecimento que haja do sinistro for obtida uma visão que exclua liminarmente, com absoluta certeza, qualquer responsabilidade dos funcionários, o procedimento limita-se exclusivamente às pendências indemnizatórias.
Existem, de facto, casos em que dos processos instaurados resultam sanções, uma percentagem insignificante. Porquê? Porque ficou demonstrado no processo que foram violados grosseiramente os deveres gerais de cuidado, comuns a todos os cidadãos, mas mais acentuados neste grupo profissional por razões óbvias. Mas nem mesmo assim são chamados a assumir a responsabilidade pelos danos, embora isso possa ser feito em determinadas circunstâncias, tendo em conta o disposto no Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (RCEE), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. É que o artigo 8.º do RCEE refere que:
- — Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.
- — O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
- — Sempre que satisfaçam qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, competindo aos titulares de poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adoptar as providências necessárias à efectivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar.
- — Sempre que, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, o Estado ou uma pessoa colectiva de direito público seja condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adoptado por um titular de órgão, funcionário ou agente, sem que tenha sido apurado o grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou agente envolvido, a respectiva acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público e o titular de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela.
Extrapolando o âmbito da notícia, penso que qualquer entidade patronal, cujas viaturas circulam a coberto de seguros de responsabilidade civil, perante a ocorrência de um sinistro, ordenará a realização das diligências que entenda convenientes no sentido de apurar as circunstâncias e eventuais responsabilidades dos seus trabalhadores, a menos que não incomode ver o património andar a ser desbaratado à revelia.